sábado, 21 de outubro de 2017

SENTIR A DOR OU SOFRER

É característica primitiva do funcionamento mental a de evitar desconfortos à qualquer custo e Sigmund Freud (1856 – 1939) bem nos orientou sobre isso em seu texto FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL, de 1911. Tanto na predominância do funcionamento mental dos bebês, quanto em certa cota do funcionamento do adulto, a tolerância ao sofrimento é capacidade pouco frequente no ser humano comum e menos ainda no sujeito quando adoecido ou perturbado.
O termo “sofrer” tem, pelo menos na língua portuguesa, usos distintos em seu significado e esse ensaio busca a reflexão dessa diferenciação, geradora de equívocos, em potencial. O conceito de sofrimento pode ser encontrado na tentativa de indicar o ato de sentir dor, sendo ela física ou psíquica. Nesse aspecto do termo, o sofrimento diz respeito à experiência de padecer por certa agonia. Por outro lado temos o termo no sentido de “passar por”, ou ainda “experimentar”. A partir desse segundo vértice, o conceito diz respeito à experiência de movimento, indicando mudança e transformação, num “sofrer o processo”.
A dor deve acontecer, a priori, independente da escolha, a não ser que seja infligida pelo próprio sujeito, num ato de auto-agressão, onde o sujeito opta por sentir dor. Em se tratando da dor que acomete sem que seja provocada é possível tão somente escolher não sofrê-la, entretanto, isso não garante que deixe de existir. Na realidade, pode acontecer que a dor se potencialize por ser ignorada. Assim como Freud apoia que a libido se manifesta através da pulsão de vida, impulsionando o sujeito numa busca constante, antes dele, Athur Schopenhauer (1788 - 1860) via a Vontade como algo que reclama satisfação, mas que, no entanto, nenhum fim alcançado pode colocar fim.
Schopenhauer propõe que, “de acordo com o conjunto dos nossos pontos de vista, a vontade é, não somente livre, mas também onipotente...” (SCHOPENHAUER, 1819). Esse importante filósofo, que tanto inspirou Freud na elaboração dos pressupostos psicanalíticos relaciona o sofrer com a Vontade e afirma que: “Quando surge um obstáculo entre ela e o seu escopo momentâneo, chamamos a tal obstáculo sofrimento; seu bom sucesso ao invés é o que chamamos satisfação, bem-estar, felicidade.”. (SCHOPENHAUER, 1819).
A vontade de viver é, então, segundo a perspectiva de Schopenhauer, fonte de sofrimento, incidindo que viver é sofrer.
Sendo o sofrimento inseparável da própria vida, aquele que busca a todo custo, evitar sofrimentos, acaba por encontrar a morte.
Grande parte das queixas que chegam aos consultórios psiquiátricos está enquadrada em certa demanda muito mais adequada às psicoterapias do que à administração medicamentosa. São demandas de reconhecimento de elementos não pensados e que carecem serem assim submetidos ao processo de reflexão. Elementos que são geradores de desconforto como sinal da necessidade de serem elaborados.
Nesses casos, depois de medicado o sujeito perde grande chance de ser tratado pelo processo psicoterapêutico, já que o desconforto emocional (dor) que é o sinal da necessidade de transformação e configura-se na grande motivação para o exercício do pensar, diminui drasticamente ou mesmo cessa. Isso, pois a introdução do medicamento deve diminuir a dor. Mesmo em psicoterapia é muito comum a procura por tratamentos psicoterapêuticos que prometam algum método em que não se tenha que sofrer.
Em sua obra ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO, Wilfred R. Bion (1897 - 1979) chama a atenção para certos pacientes que apresenta maior dificuldade no contato com a realidade em seu próprio estado mental. Essa ordem de pacientes apresenta tamanha intolerância a dor ou a frustração, “que elas sentem a dor, mas não a sofrem; assim, não é possível dizer que elas descobrem a dor.”. (Bion, 1970). Não se permitindo sofrer, o processo psicoterapêutico fica obstruído em inúmeros aspectos. No sujeito que se encontre nessa situação, resistências devem se erguer sempre que algum elemento surja no sentido de revelar conflitos que gerem desconforto e assim careçam de serem sofridos para que haja elaboração.
“O paciente que não sofre dor fracassa em ‘sofrer’ prazer, o que lhe nega o incentivo que de outro modo poderia ser proveniente de algum alívio acidental ou intrínseco.”. (Bion, 1970). O sujeito pode experimentar da dor, mas se recusa a sofrê-la. Ainda que pareça sofrer ou mesmo verbalizar que esteja sofrendo, ainda assim está somente sentindo a dor, mas não a sofrendo, por medo de sofrer. “A intensidade da dor do paciente é um fator contribuinte para seu medo de sentir dor.”. (Bion,1970). Fugindo de sofrer a dor, só faz por potencializá-la, além de impedir que o processo se realize.
Sofrer implica em transformação e as transformações no nível psíquico não têm retorno. Esse é um motivo obstrutor da predisposição para que a transformação possa fluir. Uma vez desenvolvida a cota de maturidade não pode haver retrocesso em que cada passo em frente, no amadurecimento configura-se na renúncia de formas imaturas de funcionamento. A imaturidade emocional é caracterizada pela busca desmedida do prazer, assim como na evitação a todo custo das frustrações, enquanto o amadurecimento implica em sofrimento.
Para SCHOPENHAUER os anseios nascem da necessidade que se manifesta como desagrado. Para esse pensador há, “... sofrimento até que tal aspiração não seja satisfeita; mas não existe satisfação durável: esta não é senão o ponto de partida duma nova aspiração, sempre embargada por toda maneira, sempre lutando, portanto, sempre causa de dor: para ela jamais um escopo final, jamais para ela um limite ou termo de sofrimento.”. (SCHOPENHAUER, em O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO, 1819).
Schopenhauer, reconhece a Vontade como o fator incognoscível, assim como Immanuel Kant (1724 —1804) propunha sobre a coisa-em-si. Mas, que apesar de ser incognoscível é, para Schopenhauer, experienciável, no que ele se afasta da proposta de Kant. Por outro lado, Schopenhauerse aproxima do pensamento oriental, das escrituras védicas e budistas, que pelo vértice religioso, percebe o mundo sensível na materialidade das coisas, como ilusão (Maya) que mascara uma realidade que é una e transcendente.
Buda ensinou sobre As Quatro Nobres Verdades, referentes ao sofrimento que estão no cerne da vida. Na tradução do sânscrito dukkha, mais especificamente insatisfação.
A imaginação de que existam formas que propiciem o crescimento sem que haja sofrimento, é sustentada pela incapacidade de se responsabilizar pela maturação dos processos mentais, que governa o desenvolvimento da personalidade.




Bion. W. R. ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO(1970). Imago, Rio de Janeiro, 1991.
FREUD. S. FORMULAÇÕES SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL, Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard Brasileira, IMAGO (1980), 1911.
SCHOPENHAUER, Arthur. O MUNDO COMO VONTADE E COMO REPRESENTAÇÃO. Tradução Heraldo Barbuy. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1819/2012.
SUTRA AVATAMSAKA (Sutra da Guirlanda de Flores),  Capítulo 2 do livro BUDISMO SIGNIFICADOS PROFUNDOS, Venerável Mestre HsingYün, Escrituras Editora, 2ª edição revisada e ampliada, São Paulo, dezembro de 2011.








Psicoterapeuta e  Escritor

Fone: 17-991910375 
prof.renatodiasmartino@gmail.com






segunda-feira, 2 de outubro de 2017

RELIGIOSIDADE E PSICANÁLISE: Do Místico ao Científico


RELIGIOSIDADE E PSICANÁLISE: Do Místico ao Científico
Sobre as possibilidades de diálogo entre os enunciados religiosos e as formulações psicanalíticas. 
Com Prof. Renato Dias Martino
Participação dos psicoterapeutas Amanda Carvalho e Pedro Volpato, num bate papo expansivo. 
14 de outubro às 16:00
Na OBA - Obra Assistencial da Basílica - 
Rua Floriano Peixoto, 1200 - Boa Vista, São José do Rio Preto, SP
Investimento: 15,00 + 1kg de alimento
Inscrições antecipadas pelo e-mail prof.renatodiasmartino@gmail.com
Informações pelo fone 17 30113866
Vagas limitadas
Sorteio de livros 
Com Certificado

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Sobre a Cura Gay - Prof. Renato Dias Martino e Rogério Castro


"Cura Gay"
Bate papo com o jornalista Rogério Castro.

Cura Gay

Bate papo hoje (20/09), às 14:00 com o jornalista Rogério Castro!
https://www.facebook.com/portaldiariodaregiao 

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

ORIENTAÇÕES AO JOVEM PSICOTERAPEUTA – 1

Veja mais vídeos em: https://www.youtube.com/user/viscondeverde
Prof. Renato Dias Martino é psicoterapeuta, atuante na clínica da psicanálise na cidade de São José do Rio Preto, estado de São Paulo. 
É escritor das obras "Para Além da Clínica" (2011), “Primeiros Passos Rumo à Psicanálise” (2012), “O amor e a Expansão do Pensar: Das perspectivas dos vínculos no desenvolvimento da capacidade reflexiva” (2013) e “O LIVRO DO DESAPEGO” (2017).
Entre em contato pelo e-mail prof.renatodiasmartino@gmail.com, ou pelo fone 17 – 30113866
Mais materiais em http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com.br

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quarta-feira, 23 de agosto de 2017

VIDAS ESQUECIDAS – O Alzheimer e a Família

O envelhecimento é uma etapa do processo no desenvolvimento da vida. É o momento em que o guerreiro finalmente pode se livrar da armadura pesada, que carregou a vida toda. Mas, depois de retirar a armadura indaga-se então: o que sobrou? Uma etapa delicada que guarda inúmeras características da fase infantil. Assim como a criança, o idoso requer cuidados especiais. Com alimentação, higiene, proteção. Além disso, o idoso sofre muito com a solidão, assim como um bebê que não suporta a ausência da mãe (ou daquela que supre essa função) por longos períodos. 
Na vida social somos saturados de informações todos os dias e isso é um fator de enorme prejuízo para vida mental, sobretudo no envelhecimento. O fato de o sujeito ter chegado à velhice é sinal de que muito provavelmente ele passou uma vida toda se submetendo a esse perturbador processo traumático. Essas informações que saturam a mente do sujeito, em sua maioria não estão vinculadas à experiências afetivas.
Mas, pelo contrário, são guardadas pela necessidade de não sermos punidos se esquecermos ou ainda como recurso para obtermos benefícios, motivos que na realidade, acabam por coincidirem. Chamamos isso de memória. Dados formatados e armazenados. São diferentes da recordação, que por mais que também seja registro do que já passou, tem sua origem através de um vínculo afetivo. Enquanto a memória tem o papel de acumular na mente, a recordação libera a mente de ter que lembrar.

“Somos cobrados o tempo todo a nos lembrar. Somos punidos por esquecer e elogiados quando nos lembramos. Somos entulhados de coisas que devemos nos lembrar, sem que tenhamos a menor chance de estabelecermos qualquer ligação afetiva com isso. Isso gera uma saturação das capacidades reflexivas.”. (MARTINO, em O LIVRO DO DESAPEGO, 2015.).


A psicanálise nos ensina sobre as duas tendências que comandam a vida emocional que se configuram na pulsão de vida, que tem a função de juntar e conservar e na pulsão de morte que tem a função de separação, decomposição e representam a tendência fundamental de todo ser vivo a retornar a um estado inorgânico. Em uma carta à Albert Einstein (1879 - 1955), Sigmund Freud (1856 -1939) discorre sobre essa formulação.


“Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual à sua importância. Como consequência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada. Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado instinto de morte, ao passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver.”. (Freud, em POR QUE A GUERRA? (EINSTEIN E FREUD), 1933 [1932]).


Essas duas tendências convivem o tempo todo permeando os processos mentais. Uma não anula a outra, necessariamente, mas muitas vezes trabalham associadas. No entanto, quando na mente existe um predomínio da pulsão de morte isso propicia a geração de patologias. O Mal de Alzheimer, que normalmente acomete o idoso configura-se no império da pulsão de morte. De início atuando internamente deteriorando as lembranças promovendo um caos no funcionamento mental. Posteriormente, essa disposição ao aniquilamento tende a se voltar para fora, como pulsão de destruição, em forma de hostilidade. 


“O instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. Uma parte do instinto de morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e temos procurado atribuir numerosos fenômenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição.”. (Freud, 1933 [1932]).

O desempenho da pulsão de destruição que de inicio promove a desintegração do eu, passa então a atingir o mundo externo ameaçando desintegração da família. No início a família não sabe o que está acontecendo, podendo gerar sentimentos de hostilidade e irritação. Nunca se está preparado para uma intercorrência desse tipo, por mais consciente que se possa ser dos percalços da vida.
Quando a configuração da família já se encontrava desestruturada, temos então um convite para que se estale um estado de caos. O paciente também percebe e com isso, corre o risco de se sentir um estorvo, agravando os sintomas.
Os efeitos que passam ser atribuídos à doença do paciente na realidade já existiam em alguma proporção e com o fato se aguçam. No paciente as falhas na memória, perdas de objetos pessoais, dificuldades de compreensão, episódios de hostilidade, mudanças bruscas de humor, desinteresse pela vida e o ódio dirigido à realidade, parecem já acontecer, mesmo que em uma medida sutil, antes da doença se instalar. Assim como os conflitos no ambiente familiar que têm um convite para se agravarem. Ainda assim, cada crise serve como oportunidade de se refazer vínculos deteriorados, na tentativa de reparação por um bem maior em comum. Por conta disso, a qualidade da relação anterior à doença é elemento preponderante. Na grande maioria dos casos de falta de cuidado com os pais idosos, existe histórico de falta de cuidado com os filhos.
Pais que não foram capazes de dedicar-se aos filhos, no momento delicado da infância são grandes candidatos a serem abandonados pelos mesmos, no momento frágil de sua vida, na velhice.
Com frequência as lembranças do sujeito acometido pelo Mal de Alzheimer são cheias de traumas e vínculos abusivos. Muitas vezes com registros de violência psicológica e física. Sendo assim, existe uma indagação tão frequente quanto inconsciente: Lembrar pra quê?  Esquecer é um alívio.
“Exceto no âmbito das especulações hipotéticas, não se sabe a origem da doença de Alzheimer, mas, sendo como for, do ponto de vista do funcionamento mental, essa forma de demência crônica traz uma chance de se livrar de toda a necessidade de registrar novos fatos na memória. Lembra-se daquilo que foi registrado há muito tempo, mas não consegue guardar fatos que ocorreram a pouco, naquilo que chamaríamos de memória recente.”. MARTINO, em O LIVRO DO DESAPEGO, 2015.
Na realidade, vivemos numa configuração social que têm muito pouca habilidade no cuidado com o incapaz, independente da condição do sujeito (bebê ou idoso). A não ser que isso possa trazer lucro. Com isso abre-se a possibilidade do estabelecimento de um negócio muito lucrativo. Percebe-se esse fenômeno através do aumento considerável de “escolinhas” infantis e creches que recebem crianças cada vez mais novinhas, assim como de casas de repousos para idosos.  O cuidado está sempre relacionado às recompensas. O ser humano contemporâneo tem grande dificuldade em cuidar daquele que não pode retribuir ou recompensar.
“O humano carrega a ilusão de ser capaz de atribuir ou retirar o valor da vida, enquanto o que é realmente possível é se tornar capaz, ou não, de reconhecer o valor que a vida tem: Quando não cuidas, acaba por morrer. Quando descuidas, volta-se contra ti. Quando cuidas bem, será tua esperança.”. (MARTINO, em O LIVRO DO DESAPEGO, 2015.).

Freud, S. 1933 [1932]. POR QUE A GUERRA? (EINSTEIN E FREUD), in Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard Brasileira, IMAGO (1969-80).
MARTINO, R. D. O LIVRO DO DESAPEGO - 1. ed. - São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2015.





Prof. Renato Dias Martino 
Psicoterapeuta e  Escritor
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