Por mais que tentemos dar nomes às coisas, essa
tarefa nunca poderá ser totalmente completa ou acabada, se concordarmos que
vivemos num processo constante de reconhecimento da realidade. Desafortunado
aquele que imagina conhecer plenamente seja lá o que for. Pode se perder em si
mesmo e se tornar incapaz de aprender com as experiências da vida. Por conta
disso, repensar as definições deve ser um exercício constante e nem um esforço
pode ser em vão dentro dessa proposta. O trabalho psicoterapêutico consiste em
grande parte, na tarefa de auxiliar a nomeação de sentimentos e experiências.
Muitas vezes somos inundados por sentimentos dos quais não conseguimos sequer
descrever com muita clareza e muito menos somos capazes de dar nome a isso que
sentimos. Num outro vértice, frequentemente afirmamos verbalmente uma série de
conceitos dos quais muito pouco vivenciamos.
Comumente encontramos a palavra humildade usada para
descrever situação de pobreza e ainda encontra-se confundida com o termo
submissão nas definições dos dicionários brasileiros. No entanto, se pensarmos
melhor no que se tem teoricamente dificilmente seguirá a mesma direção na
prática.
Existe um longo caminho entre os conceitos e esse
caminho que difere um do outro parte da capacidade de reconhecimento de si
mesmo. Enquanto o humilde tem larga percepção sobre si mesmo em relação ao
outro e ao mundo, passando a ser capaz de responsabilizar-se por isso, o
submisso não tem a mesma capacidade e não pode desenvolver o senso de
responsabilização.
A atitude submissa é originária da incapacidade de lidar com incertezas, o que faz com que o submisso se sinta inferior diante dos
demais que pelo menos aparentemente conseguem lidar bem com isso. Com medo ou
indefesos diante da dúvida, desenvolve mecanismos de defesa como o de desistir
logo das tentativas de superação, aderindo ao outro de forma subserviente. Ele
não pode ser capaz de reconhecer o mundo e muito menos a si mesmo. Se sentindo
incapaz, torna-se subserviente ao outro, buscando segurança na dependência
exclusiva deste para viver, deixando que lhe digam como agir, como andar, como
se vestir... De tal modo, é sempre o outro o responsável pelas conquistas ou
fracassos. Por conta disso vive vezes bajulando, vezes criticando o outro.
A submissão é um estado mórbido de coisas que é
mantido sem exigir esforço algum, além disso, é justamente esse o grande
benefício da subserviência: o de não se esforçar por nada. De forma diversa a
humildade depende de exercício, não podendo ser atingida e mantida sem grande
dedicação. Quando existe a busca pela humildade é sinal de que se está sendo
capaz de enxergar a si mesmo e ao mundo de uma forma menos narcisista, assim
sendo, mais tolerantes nos vínculos. Sendo parte de um processo de maturação,
quanto maior for o grau de humildade, tanto maior será a capacidade emocional e
a disposição para a expansão afetiva, na capacidade de amar.
A partir da consciência de sua própria
vulnerabilidade perante o mundo desenvolve-se a humildade e passa a ser
possível se responsabilizar por criar recursos para lidar com essa descoberta
sobre si. Pois bem, quanto mais consciente da sua própria ignorância maior amplitude a humilde terá. Enquanto o submisso ainda acredita que a submissão
pode trazer a segurança, o humilde percebe que essa insegurança vem da condição
frágil do ser humano. Fragilidade em relação à natureza, que pode nos
exterminar em segundos, como num terremoto, ou ainda lentamente bem como
fatalmente acontecerá, conforme os anos passam e a idade avançada chega.
Fragilidade que se revela nas relações afetivas, quando nos propomos a amar de
verdade. Essa fragilidade que se mostra condição fundamental para a humildade,
não se encontra somente em relação ao outro e ao mundo, mas se revela na
relação do ‘eu’ para com o ‘eu mesmo’. A psicanálise nos ensina com muita
propriedade o quanto traímos a nós mesmos e o quanto somos paralisados por
conta dos conflitos internos que nos leva, muitas vezes ao ponto de cometermos
certas auto-sabotagens, impedindo o decurso natural de nossas vidas.
Sendo assim, a humildade revela o quanto somos
frágeis e vulneráveis frente ao universo, constituindo antes de tudo a busca
pela essência da criação. A origem da palavra vem do latim humus, “terra”, onde
humilis quer dizer “aquilo que permanece no chão e que não se ergue”. Na
religiosidade a busca pelo cultivo da humildade é tida como virtude
fundamental. Assim como nas escrituras védicas na devoção à Krishna somos
humildes servos da Suprema Manifestação. Quando Krishna apareceu como Shri
Cheitanya Mahaprabhu (1486 - 1534) em sua mais recente encarnação, nos orienta
com o ensinamento de que apenas o humilde, tolerante, capaz de tratar a si
mesmo e a todos respeitosamente, nada esperando em troca, pode escapar das
garras das ofensas e viver uma vida de paz.
A humildade dessa maneira demanda sempre de certo
grau de desenvolvimento emocional, num processo de renúncia das ilusões de que
supostamente somos detentores do saber, ou ainda da valorização material, se
efetivando no ‘ser’. Ilusões que tornam o sujeito prisioneiros dos vínculos
perversos de submissão que de maneira sedutora inevitavelmente serão oferecidos
em cada esquina da nossa caminhada. A partir desse vértice de reflexão a
conotação comum da palavra humildade empregada para descrever situação de
pobreza ou submissão, se descaracteriza completamente revelando justamente a
riqueza e a libertação em ser capaz de se cultivar a humildade que revela ser a
via segura para se reconhecer a realidade.
Fone: 17-30113866 ou 991910375
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Um comentário:
Obrigada pela lembrança do real significado das palavras e a necessidade, muitas vezes, de desconstrução de outros significados que não o correto.
Valeu a pena a leitura do teu texto: tão simples, esclarecedor e merecedor de efetiva prática.
Abraço
Tânia
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