É muito comum vermos
frases como “a vida é feita de escolhas” sendo afirmadas de forma filosófica
pelos mais variados pensadores. Nós, seres humanos idealizamos a liberdade de
escolha, chegando a praticar verdadeiros absurdos por conta de nos sentirmos impedidos
de escolher. Enquanto envolvidos na vida material, somos forçados a fazer
escolhas diariamente. E, na realidade, é só dentro dessa dimensão que as
escolhas realmente podem ocorrer. É possível escolher se as opções estiverem
tão somente dentro da materialidade das coisas.
"Escolhas,
decisões ou decepções, estão ligadas às superficialidades das coisas materiais,
no nível racional, sendo que aquilo que é da ordem do fundamental não pode ser
submetido à nossa vontade.”. (Martino, em O LIVRO DO DESAPEGO, 2015).
Ainda que seja possível
escolher na dimensão material, mesmo assim, nossas escolhas esbarram num
problema complexo. Como bem nos ensinou Sigmund Freud (1856-1939) "... o
ego não é o senhor da sua própria casa.". (Freud, em UMA DIFICULDADE NO
CAMINHO DA PSICANÁLISE, 1917).
Freud levanta a questão
da parte inconsciente da mente, que é enormemente maior que a parte consciente,
com isso revela que nossas escolhas nunca são inteiramente conscientes e na
realidade a maior parte delas fazemos sem saber muito bem o porquê.
Segundo Schopenhauer as
escolhas são feitas indiferente do que elegemos como motivo consciente. Para o
filósofo que influenciou grandemente Freud, a escolha não revela ideias
superficiais, mas:
“ela responde ao conjunto de nossos sentimentos, de nossos
pensamentos e de nossas aspirações as mais íntimas…”. (Schopenhauer, 1818).
Aquilo que realmente motiva o sujeito está distante de seu próprio
conhecimento.
Essa ideia já se
encontrava no pensamento humano, mesmo antes de Freud, em Arthur Schopenhauer
(1788 —1860), filosofo alemão, quando propõe que o ser humano não é livre, mas
é sujeito à suas necessidades representadas na vontade de viver. Em seu ensaio
SOBRE A LIBERDADE DA VONTADE, Schopenhauer propõe que a liberdade de escolha
está subordinada a necessidade e dela é escrava.
Além disso, existe
sempre a influência do desejo do outro em nossas escolhas, já que o primeiro e
maior desejo do ser humano é o de ser desejado. De tal modo, desenvolve
inúmeros recursos para atrair a atenção do outro com o intuito de ser aprovado
por ele. De qualquer forma, por mais que o sujeito imagine que suas escolhas
tenham sido feitas por sua própria vontade, ainda assim essas escolhas terão
grande influencia do desejo do outro.
Uma verdade difícil de
conceber, mas ainda assim, evidente a aquele que tem coragem de perceber, é o
fato de que para aquilo que realmente importa não existe escolha. A realidade é
uma só, independente do nosso desejo, ou de nossas escolhas e só o que podemos
fazer é nos tornarmos capazes de reconhecê-la como ela é.
Lembro-me da musica do
Renato Russo (1960 — 1996), QUANDO O SOL BATER NA JANELA DO SEU QUARTO: lembra
e vê que o caminho é um só. Temos o livre arbítrio e esse é um conceito
presente tanto na filosofia quanto nas religiões, no entanto, a realidade ainda
é uma só. Ou estamos de acordo com a realidade ou estamos nos mantendo
iludidos.
Na realidade, somos
obrigados a escolher quando não estamos sendo capazes de nos manter de acordo
com a realidade. Desta forma fica obstruída a percepção do caminho que está
aberto bem a nossa frente. Somos, amiúde, levados a julgar, estabelecendo o que
é bom e o que é ruim.
Num modelo primitivo de perceber o mundo, de forma
desintegrada, assim como nos propõe Melanie Klein (1882 — 1960) sobre a posição
esquizoparanoide. Segundo Klein, não existe no bebê ao nascer, suficiente
capacidade para tolerar as angústias que experimenta e por conta disso o ego é
fragmentado. Com o eu dividido, a realidade externa também se decompõe. As
experiências de gratificação e frustração são sentidas com grande intensidade
pelo bebê.
“Em consequência, o
seio materno , tanto quanto é gratificador, também é amado é sentido como
‘bom’; na medida em que for uma fonte de frustração, será odiado e sentido como
‘mau’.”. (Klein, 1952).
Depois de adultos, ainda funcionamos, a maior parte do
tempo dessa forma primitiva, assim como fazíamos quando bebês. Elegemos como
bom, aquilo que nos traz prazer, ou nos proporciona gratificação, de alguma
forma, e elencamos como mau aquilo que nos frustra, ou nos priva de
recompensas.
O ser humano tem enorme
dificuldade em atingir a maturidade suficiente para que seja possível seguir
seu caminho, sem esperar recompensas em troca. A psicanálise assim como a
filosofia, nos traz grandes contribuições nesse sentido, entretanto as
formulações religiosas já nos alertavam para isso há tempos.
No BHAGAVAD GITA,
trecho das mais antigas escrituras da Índia, Sri Krsna elucida ao guerreiro
Arjuna sobre a desventura de agir esperando recompensas, que torna o sujeito
escravo de um falso-agir. Esse que assim o faz, de forma inversa, acaba por se
onerar de prejuízos sempre que age dessa maneira. Diferente daquele que age
simplesmente pelo amor à realização da alma, indiferente dos resultados, age
conforme a auto-realização.
“Obra praticada com
desejo de recompensa, na esperança de receber em troca algo melhor, por
vaidade, ganância ou ostentação – esta reveste a índole da cobiça.”. (BHAGAVAD
GITA, 17:12).
Também no capítulo 2 do
TAO TE CHING, que é O LIVRO DO CAMINHO E DA VIRTUDE de Lao Tse, ele escreve
sobre o “wu wei”, que significa a não-ação e tem o sentido de ação sem
intenção. Essa obra é a estrutura central do taoísmo. Lao Tse nasceu na
província de Na Hue, na cidade de Guo Yang, no período entre 1324 e 1408 A.C..
“O Homem Sagrado
realiza a obra pela não-ação
E pratica o ensinamento
através da não-palavra
Os dez mil seres fazem,
mas não para se realizar
Iniciam a realização
mas não a possuem
Concluem a obra sem se
apegar
E justamente por
realizarem sem apego
Não passam.”
Lao Tse no TAO TE
CHING.
Também na fé cristã é
possível encontrar essa mesma ideia. Na devoção da oração do Pai Nosso onde se
diz “seja feita a vossa vontade”. Abrimos mão de nossas escolhas para que algo
maior nos guie. De qualquer maneira, seja em que perspectiva for, sempre que
estivermos cogitando sobre formulações nobres e amadurecidas do pensar, será
possível perceber que a escolha é sempre ilusória se aplicada às experiências
fundamentais que devem seguir um fluxo natural que não se encontra dentro de
nosso domínio.
Portanto, pela
predominância inconsciente do funcionamento mental, como nos orienta a
psicanálise, não nos permite ter consciência do nosso desejo e isso nos faz
incapazes de nos tornarmos donos de nossas escolhas.
Da mesma maneira, na ideia
de Schopenhauer, que antecedeu a psicanálise, a vontade imperiosa do corpo não
nos permite desejar o que desejamos querer, fazendo que nossa escolha seja
sempre tendenciosa. Na perspectiva religiosa, onde a vontade de Deus sobrepõe à
do humano, que mesmo gozando do livre arbítrio, fica subordinado à vida
material quando recorre a suas escolhas. Ou ainda, na lei da natureza que
sobrepõe à escolha humana, que mesmo tentando ousa dominá-la sofre severas
consequências. Sendo assim, fica a indagação: o que realmente podemos escolher?
ESCOLHAS!
Mas, de que escolha
aqui falamos, ora, pois?
Se quando era incapaz
de escolher, isso por si só,
já era evidente e
impossibilitado me via de escolher,
por conta dessa
condição de limitação.
E agora, amadurecido
pela vida,
quando me parece
possível escolher,
vejo me comandado pela
minha intuição,
que me aponta um
caminho e me diz que não há outra direção.
Assim, mais uma vez,
fico sem escolha, então...
Se a água não escolhe
pra onde escorrer
e escorre mesmo sem
questionar.
Pode sim ser obstruída
e se interromper
e assim pode em mágoa
represar.
Porém, ora desobstruída
volta a escorrer
mesmo sem ninguém pra
lembrar.
(Martino, em O LIVRO DO
DESAPEGO, 2015).
BÍBLIA.
Português. BÍBLIA ONLINE. Disponível em: . Acesso em: 08 jan. 2017.
Freud, S.
(1917). UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, in Edição Eletrônica
Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard Brasileira, IMAGO
(1969-80),
KLEIN, M,
(1952/1969). ALGUMAS CONCLUSÕES TEÓRICAS SÔBRE À VIDA EMOCIONAL DO BEBÊ. Em OS
PROGESSOS DA PSICANÁLISE. Rio de Janeiro: ZAHAR EDITORES.
LAO-TSÉ. Tao
Te Ching. Tradução de Huberto Rohden. São Paulo. Martin Claret. 2003.
MARTINO, R.
D. O LIVRO DO DESAPEGO - 1. ed. - São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária
Editora, 2015.
SCHOPENHAUER,
A. Sobre la liberdad de la voluntad. Alianza Editorial, Madrid, 2002 Traductor:
Eugenio Ímaz.
______________
(1818). O Mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto
Editora, 2001. (Tradução de M. F. Sá Correia).
Prabhupada,
A. C. Bhaktivedanta Swami. O BHAGAVAD-GITA - Como Ele É. Editora: The
Bhaktivedanta Book Trust. 1976.
Prof. Renato Dias Martino
2 comentários:
[...] De qualquer maneira, seja em que perspectiva for, sempre que estivermos cogitando sobre formulações nobres e amadurecidas do pensar, será possível perceber que a escolha é sempre ilusória se aplicada às experiências fundamentais que devem seguir um fluxo natural que não se encontra dentro de nosso domínio.
Excelente!
Abs,
[...]"Abrimos mão de nossas escolhas para que algo maior nos guie." Realmente um grande e importante ensinamento. Gratidão.
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