quarta-feira, 24 de maio de 2017

SOBRE ESCOLHAS E RECOMPENSAS

É muito comum vermos frases como “a vida é feita de escolhas” sendo afirmadas de forma filosófica pelos mais variados pensadores. Nós, seres humanos idealizamos a liberdade de escolha, chegando a praticar verdadeiros absurdos por conta de nos sentirmos impedidos de escolher. Enquanto envolvidos na vida material, somos forçados a fazer escolhas diariamente. E, na realidade, é só dentro dessa dimensão que as escolhas realmente podem ocorrer. É possível escolher se as opções estiverem tão somente dentro da materialidade das coisas.
"Escolhas, decisões ou decepções, estão ligadas às superficialidades das coisas materiais, no nível racional, sendo que aquilo que é da ordem do fundamental não pode ser submetido à nossa vontade.”. (Martino, em O LIVRO DO DESAPEGO, 2015).
 Ainda que seja possível escolher na dimensão material, mesmo assim, nossas escolhas esbarram num problema complexo. Como bem nos ensinou Sigmund Freud (1856-1939) "... o ego não é o senhor da sua própria casa.". (Freud, em UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, 1917).
Freud levanta a questão da parte inconsciente da mente, que é enormemente maior que a parte consciente, com isso revela que nossas escolhas nunca são inteiramente conscientes e na realidade a maior parte delas fazemos sem saber muito bem o porquê.
Segundo Schopenhauer as escolhas são feitas indiferente do que elegemos como motivo consciente. Para o filósofo que influenciou grandemente Freud, a escolha não revela ideias superficiais, mas:
“ela responde ao conjunto de nossos sentimentos, de nossos pensamentos e de nossas aspirações as mais íntimas…”. (Schopenhauer, 1818). Aquilo que realmente motiva o sujeito está distante de seu próprio conhecimento.
Essa ideia já se encontrava no pensamento humano, mesmo antes de Freud, em Arthur Schopenhauer (1788 —1860), filosofo alemão, quando propõe que o ser humano não é livre, mas é sujeito à suas necessidades representadas na vontade de viver. Em seu ensaio SOBRE A LIBERDADE DA VONTADE, Schopenhauer propõe que a liberdade de escolha está subordinada a necessidade e dela é escrava.
Além disso, existe sempre a influência do desejo do outro em nossas escolhas, já que o primeiro e maior desejo do ser humano é o de ser desejado. De tal modo, desenvolve inúmeros recursos para atrair a atenção do outro com o intuito de ser aprovado por ele. De qualquer forma, por mais que o sujeito imagine que suas escolhas tenham sido feitas por sua própria vontade, ainda assim essas escolhas terão grande influencia do desejo do outro.
Uma verdade difícil de conceber, mas ainda assim, evidente a aquele que tem coragem de perceber, é o fato de que para aquilo que realmente importa não existe escolha. A realidade é uma só, independente do nosso desejo, ou de nossas escolhas e só o que podemos fazer é nos tornarmos capazes de reconhecê-la como ela é.
Lembro-me da musica do Renato Russo (1960 — 1996), QUANDO O SOL BATER NA JANELA DO SEU QUARTO: lembra e vê que o caminho é um só. Temos o livre arbítrio e esse é um conceito presente tanto na filosofia quanto nas religiões, no entanto, a realidade ainda é uma só. Ou estamos de acordo com a realidade ou estamos nos mantendo iludidos.
Na realidade, somos obrigados a escolher quando não estamos sendo capazes de nos manter de acordo com a realidade. Desta forma fica obstruída a percepção do caminho que está aberto bem a nossa frente. Somos, amiúde, levados a julgar, estabelecendo o que é bom e o que é ruim.
Num modelo primitivo de perceber o mundo, de forma desintegrada, assim como nos propõe Melanie Klein (1882 — 1960) sobre a posição esquizoparanoide. Segundo Klein, não existe no bebê ao nascer, suficiente capacidade para tolerar as angústias que experimenta e por conta disso o ego é fragmentado. Com o eu dividido, a realidade externa também se decompõe. As experiências de gratificação e frustração são sentidas com grande intensidade pelo bebê.
“Em consequência, o seio materno , tanto quanto é gratificador, também é amado é sentido como ‘bom’; na medida em que for uma fonte de frustração, será odiado e sentido como ‘mau’.”. (Klein, 1952).
Depois de adultos, ainda funcionamos, a maior parte do tempo dessa forma primitiva, assim como fazíamos quando bebês. Elegemos como bom, aquilo que nos traz prazer, ou nos proporciona gratificação, de alguma forma, e elencamos como mau aquilo que nos frustra, ou nos priva de recompensas.
O ser humano tem enorme dificuldade em atingir a maturidade suficiente para que seja possível seguir seu caminho, sem esperar recompensas em troca. A psicanálise assim como a filosofia, nos traz grandes contribuições nesse sentido, entretanto as formulações religiosas já nos alertavam para isso há tempos.
No BHAGAVAD GITA, trecho das mais antigas escrituras da Índia, Sri Krsna elucida ao guerreiro Arjuna sobre a desventura de agir esperando recompensas, que torna o sujeito escravo de um falso-agir. Esse que assim o faz, de forma inversa, acaba por se onerar de prejuízos sempre que age dessa maneira. Diferente daquele que age simplesmente pelo amor à realização da alma, indiferente dos resultados, age conforme a auto-realização.
“Obra praticada com desejo de recompensa, na esperança de receber em troca algo melhor, por vaidade, ganância ou ostentação – esta reveste a índole da cobiça.”. (BHAGAVAD GITA, 17:12).

Também no capítulo 2 do TAO TE CHING, que é O LIVRO DO CAMINHO E DA VIRTUDE de Lao Tse, ele escreve sobre o “wu wei”, que significa a não-ação e tem o sentido de ação sem intenção. Essa obra é a estrutura central do taoísmo. Lao Tse nasceu na província de Na Hue, na cidade de Guo Yang, no período entre 1324 e 1408 A.C..

“O Homem Sagrado realiza a obra pela não-ação
E pratica o ensinamento através da não-palavra
Os dez mil seres fazem, mas não para se realizar
Iniciam a realização mas não a possuem
Concluem a obra sem se apegar
E justamente por realizarem sem apego
Não passam.”
Lao Tse no TAO TE CHING.

Também na fé cristã é possível encontrar essa mesma ideia. Na devoção da oração do Pai Nosso onde se diz “seja feita a vossa vontade”. Abrimos mão de nossas escolhas para que algo maior nos guie. De qualquer maneira, seja em que perspectiva for, sempre que estivermos cogitando sobre formulações nobres e amadurecidas do pensar, será possível perceber que a escolha é sempre ilusória se aplicada às experiências fundamentais que devem seguir um fluxo natural que não se encontra dentro de nosso domínio.
Portanto, pela predominância inconsciente do funcionamento mental, como nos orienta a psicanálise, não nos permite ter consciência do nosso desejo e isso nos faz incapazes de nos tornarmos donos de nossas escolhas.
Da mesma maneira, na ideia de Schopenhauer, que antecedeu a psicanálise, a vontade imperiosa do corpo não nos permite desejar o que desejamos querer, fazendo que nossa escolha seja sempre tendenciosa. Na perspectiva religiosa, onde a vontade de Deus sobrepõe à do humano, que mesmo gozando do livre arbítrio, fica subordinado à vida material quando recorre a suas escolhas. Ou ainda, na lei da natureza que sobrepõe à escolha humana, que mesmo tentando ousa dominá-la sofre severas consequências. Sendo assim, fica a indagação: o que realmente podemos escolher?

ESCOLHAS!
Mas, de que escolha aqui falamos, ora, pois?
Se quando era incapaz de escolher, isso por si só,
já era evidente e impossibilitado me via de escolher,
por conta dessa condição de limitação.
E agora, amadurecido pela vida,
quando me parece possível escolher,
vejo me comandado pela minha intuição,
que me aponta um caminho e me diz que não há outra direção.
Assim, mais uma vez, fico sem escolha, então...
Se a água não escolhe pra onde escorrer
e escorre mesmo sem questionar.
Pode sim ser obstruída e se interromper
e assim pode em mágoa represar.
Porém, ora desobstruída volta a escorrer
mesmo sem ninguém pra lembrar.
(Martino, em O LIVRO DO DESAPEGO, 2015).

BÍBLIA. Português. BÍBLIA ONLINE. Disponível em: . Acesso em: 08 jan. 2017.
Freud, S. (1917). UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, in Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard Brasileira, IMAGO (1969-80),
KLEIN, M, (1952/1969). ALGUMAS CONCLUSÕES TEÓRICAS SÔBRE À VIDA EMOCIONAL DO BEBÊ. Em OS PROGESSOS DA PSICANÁLISE. Rio de Janeiro: ZAHAR EDITORES.
LAO-TSÉ. Tao Te Ching. Tradução de Huberto Rohden. São Paulo. Martin Claret. 2003.
MARTINO, R. D. O LIVRO DO DESAPEGO - 1. ed. - São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2015.
SCHOPENHAUER, A. Sobre la liberdad de la voluntad. Alianza Editorial, Madrid, 2002 Traductor: Eugenio Ímaz.
______________ (1818). O Mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2001. (Tradução de M. F. Sá Correia).
Prabhupada, A. C. Bhaktivedanta Swami. O BHAGAVAD-GITA - Como Ele É. Editora: The Bhaktivedanta Book Trust. 1976.













2 comentários:

Ana Raquel disse...

[...] De qualquer maneira, seja em que perspectiva for, sempre que estivermos cogitando sobre formulações nobres e amadurecidas do pensar, será possível perceber que a escolha é sempre ilusória se aplicada às experiências fundamentais que devem seguir um fluxo natural que não se encontra dentro de nosso domínio.

Excelente!
Abs,

Sandra Brito disse...

[...]"Abrimos mão de nossas escolhas para que algo maior nos guie." Realmente um grande e importante ensinamento. Gratidão.