terça-feira, 18 de junho de 2019

DO QUE É VERDADEIRO AO QUE É FALSO


A tomada de consciência da realidade é um tema amplamente cogitado pelo pensamento humano, desde as mais remotas manifestações que se tem registro. A distinção possível entre o que se configura como ilusão e o que se possa reconhecer quanto ao fato da realidade é questão de ordem das mais nobres áreas de reflexão. Por outro lado, esse mesmo tema é fator de evitação constante de grande parte das pessoas.
Normalmente evitamos a tomada de consciência da realidade até as últimas consequências, só nos rendendo a isso quando todos os subterfúgios desabam.
Na cultura védica, que tem suas escrituras datadas por volta de 1500 a.C, o conceito de maya é referente a ilusão na configuração da natureza material do universo. Na semântica a palavra maya é formada pela junção de ma, significando "medir, ou marcar " com ya, que significa "aquilo". Essa ideia sugere que o que aquilo que pode ser medido é ilusão.
Maya é fator central de obstrução na experiência do desapego quanto àquilo que faz parte do mundo sensorial. Uma dimensão que seduz e aprisiona aquele que se vê emocionalmente vulnerável. Fragmentário e apartado do todo, o objeto de desejo configurado em maya tem sempre uma conotação egoísta, distante da integração consigo mesmo e com o cosmos.
Aquilo que é da ordem de maya gratifica os sentidos proporcionando sensação prazerosa, mas por outro lado, é pobre de nutrientes emocionais, o que leva sempre à repetição e induz ao engano gerado pelo dualismo. A impressão do sujeito envolvido pelo véu de maya é que isso é a totalidade, enquanto de fato é uma pequena parte da realidade última, que é configurada na unificação do todo infinito.
A psicanálise é um recurso por excelência na tarefa de percepção e reconhecimento da realidade. Um nobre instrumento na empreitada de diferenciação do que pode ser ilusão daquilo que se revela como realidade dos fatos. No entanto, esse processo não acontece de maneira voluntária, já que enquanto a ilusão é prazerosa, o reconhecimento da realidade é desconfortável. “Não é de espantar, então, que o ego não veja com bons olhos a psicanálise e se recuse obstinadamente a acreditar nela.” (Freud, 1917).
Em 1917, Sigmund Freud (1856 – 1939) publica UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, onde levanta as reconfigurações do modo como a humanidade reconhece a realidade através do que chamou de golpes narcísicos. Assim como, “na nossa concepção, o indivíduo progride do narcisismo para o amor objetal.” (Freud, 1917). Segundo propõe Freud, da mesma forma que existe a necessidade de se abrir mão de certo narcisismo, na ilusão de ser o centro do universo, para que possa se ligar ao outro, num amor verdadeiro, o pensamento humano também deve evoluir, quebrando seu narcisismo do que “seria melhor que fosse” para que seja possível reconhecer a realidade como realmente é.
Nessa mesma perspectiva, mais tarde o psicanalista Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979) propõe o que chamou de “mudança catastrófica”, capaz de gerar fortes sentimentos. “Esses sentimentos relacionam-se a um sistema moral que foi violentado; a força desses sentimentos deriva do risco de ocorrer mudança na psique.” (Bion, 1970). Bion propõe que essa mudança ocorre sempre que um sistema é abalado pela entrada da verdade. “Evolução ou crescimento mental é algo catastrófico e atemporal.” (Bion, 1970).
A maturidade emocional, que se dá através de desilusões,quando possam ser acolhidas, ocorre no dar-se conta da realidade como ela é, justamente a mudança catastrófica. 
Porém, existem obstáculos nesse percurso. O ser humano tem grande dificuldade em distinguir aquilo que ele gostaria que fosse daquilo que realmente é. O desconforto na tomada de consciência é fator que obstrui o sujeito de se desapegar das ilusões.
Assim, é formado um cômodo sistema de critérios preestabelecidos, onde as leis civilizatórias e sociais estimulam certa padronização limitadora da expansão do pensar. “Pressuposições educacionais são introduzidas desde a mais tenra infância, conservado alguns pressupostos sociais que são impedidos de serem repensados por tomarem um formato saturado numa definição de certo/errado.” (Martino, 2018). Normalmente é substituída a avaliação do que é verdadeiro e o que é falso, pelo estabelecimento do que está certo ou errado. “O grande problema no estabelecimento do critério certo/errado é que fica comprometida a capacidade de percepção no discernimento verdadeiro/falso.” (Martino, 2018).
Ora, a ponderação entre verdadeiro ou falso depende fundamentalmente da atitude e da responsabilização do sujeito, enquanto um critério de certo ou errado o desresponsabiliza, pois se utiliza da visão do outro. Usualmente o sujeito avalia o que é verdadeiro ou falso através do desconforto que a ideia pode gerar. Portanto, se doer não existe.
Ainda assim, a realidade não carece de justificativas, nem mesmo de alguém que a confirme para garantir sua efetividade. “O pensador não tem a menor consequência para a verdade, mas a verdade é logicamente necessária ao pensador.” (Bion, 1970).
Diferente da ilusão que carece essencialmente de alguém que a reafirme constantemente para ser mantida. “A mentira e o pensador são inseparáveis.” (Bion, 1970). Conforme Bion propõe, no que me parece muito coerente, as mentiras são os únicos pensamentos em que o pensador é fundamentalmente imprescindível. A realidade, por sua vez, é por si só, não carecendo de comprovantes.



BION, W.R. Atenção e Interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1970.
_________ (1971). Mudança catastrófica. (C. H. P. Affonso & M. R. M. Affonso, Trads.). Jornal de Psicanálise, 6(17). (Original publicado em 1966).
Freud. S. UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE Vol. XVII, (1917).
MARTINO, Renato Dias. ACOLHIDA EM PSICOTERAPIA – 1ª ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2018.










Fone: 17- 991910375






Um comentário:

Unknown disse...

Ao pouco que entendo, a avaliação de certo/errado vem de critérios de criação,ponto de vista, ignorar o que não e confortável.Entao uma forma de sentir uma situação e verdadeira pra um e falsa para outro,de forma que imagino se uma verdade absoluta?