domingo, 9 de junho de 2019

HUMILDADE NA PRÁTICA CLÍNICA DA PSICOTERAPIA

Alguns elementos são fundamentais para que um processo psicoterapêutico possa se realizar de forma bem-sucedida. Com o intuito de elucidação, Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979) elenca determinados elementos fundamentais para sua prática clínica, em sua obra ELEMENTOS DE PSICANÁLISE. A relação possível entre algo que possa dispor-se como continente e outro algo que se disponha a ser contido é o primeiro elemento para Bion. Como já havia apresentado em seu trabalho de 1962, APRENDENDO DA EXPERIÊNCIA, Bion promove uma expansão do pensamento de Melanie Klein (1882 — 1960), na concepção do que ela chamou de identificação projetiva. “Ele é uma representação de um elemento que poderia ser denominado como uma relação dinâmica entre continente e contido.”. (Bion, 1963).
Bion descreve algumas características como condições para que o elemento seja enquadrado nessa ordem, onde deve, antes de tudo, estar a serviço de representação da formulação originalmente usada. Deve também ser possível relacioná-lo com outros elementos e com isso formar um sistema de articulação interdependente, para ser aplicada a experiência com a realidade. São atributos que qualificam o elemento como sendo fundamental num curso profícuo do processo na terapia da mente.
Bion formulou o que chamou de Grade; um instrumento de trabalho com a função de auxiliar na elaboração do material colhido na prática clínica e também na organização dos elementos num sistema.
No entanto, ele coloca que isso do qual propõe é a Grade dele próprio, portanto, seria interessante que cada um pudesse fazer a sua. Na realidade, cada sujeito que esteja se dedicando à prática psicoterapêutica deve desenvolver naturalmente uma espécie de “grade” interna, para reconhecer seus pacientes. Quanto mais conscientemente isso ocorra, tanto melhor será a experiência no processo. Dessa mesma forma, penso ser importante que cada um que esteja se propondo a ocupar a função de psicoterapeuta, possa e deva construir sua própria configuração de elementos que se utilize em sua pratica clínica. 
Nesse ensaio tento seguir o mesmo caminho de Bion para propor o elemento da humildade como sendo fundamental no estabelecimento e manutenção do vínculo, no processo psicoterapêutico. A humildade é condição fundamental e se apresenta como elemento psicanalítico a partir de inúmeros fatores que se relacionam entre si, assim como sugerido por Bion na avaliação para tal inclusão. Na realidade, humildade é condição indispensável para qualquer que seja o vínculo estabelecido, enquanto saudável e não poderia ser diferente no âmbito da aliança terapêutica. Ainda assim, não é raro encontrar relatos da ausência desse elemento nos atendimentos psicoterapêuticos. Essa é uma constatação freqüente na descrição sobre atendimentos anteriores de pacientes que me procuram na clínica. Fica muito claro durante o desenvolvimento psicoterapêutico com esses pacientes, que a ausência de humildade fora um fator preponderante para o fracasso do processo. Esse foi um dos grandes motivos que me levou a escrever esse ensaio propondo a humildade como um elemento dessa ordem. 
Importante seria deixar claro que, o que chamo aqui de humildade não está relacionado à situação de pobreza ou submissão.
Descrevo aqui com esse termo, o estado de mente onde o sujeito se coloca num acordo com a realidade, bem próximo do significado original na semântica da palavra, do latim humus, “terra”, onde nos encontramos no que há de mais simples e ao mesmo tempo mais nobre, no acordo com a realidade. Desfazendo assim a ilusão de separação entre aqueles que têm sentimentos, percepções, do latim sentire, "sentir", os seres sencintes, que segundo o ensinamento budista, está implicado provavelmente em tudo e de alguma forma em todos os níveis. “Os elementos que acreditamos estarem separados na realidade são um só e a mesma coisa. Assim como na divisão das nações do mundo, somos todos um só povo, mas, ainda assim vivemos com a ilusão de sermos divididos e separados.”. (Martino, 2018). 
Essa ideia é cogitada não só no âmbito místico religioso, mas aparece no vértice cientifico filosófico, desde a Grécia antiga quando se procurava um princípio que unificasse todos os fenômenos observáveis no mundo, até nas mais avançadas ciências contemporâneas, como é o caso dos estudos da mecânica quântica, onde se reconhece certa matéria cósmica, “uma substância universal que passaria por todas as transformações, da qual todas as coisas emergiriam para depois a ela retornar" (Heisenberg, 1995). Ao mesmo tempo, não é necessário irmos tão longe para percebermos esse fato. Ora, para todo aquele que atinja o mínimo de maturidade emocional, essa realidade deve ficar cada dia mais clara. Até porque, a humildade é, antes de tudo, um fator da maturidade emocional.
Dentro da simplicidade do ser, nos reconhecemos como uma parte do todo e quando integrados e tolerantes dos desconfortos gerados nesse processo, desenvolvemos a compaixão, nos tornado mais capazes de tratar a si mesmo e consequentemente, ao outro com respeito. Essa experiência propicia a possibilidade de se estar uno a si mesmo e ao todo. Porém, para tanto é necessário uma experiência especial de quebra de narcisismo, onde é fundamental um rebaixamento drástico da arrogância, prepotência e exclusivismo.
Na situação da pratica clínica, quando o sujeito se propõe a receber alguém que sofre com uma dor psíquica, deve ser humilde o suficiente para reconhecer sua limitada capacidade frente a esse sofrimento que tem seu próprio tempo de elaboração independente de qualquer que seja a expectativa projetada no paciente ou no processo.
A humildade do analista também está implicada no fato de que, por mais que tenha se dedicado a estudar teorias, ele é e sempre será completamente ignorante sobre o paciente que se propõe a acolher e ainda que depende deste para que possa se guiar na tarefa de ajudá-lo. Cada caso é “o caso”: quanto à dor psíquica não existe pré-estabelecido.
A humildade também é necessária para reconhecer que qualquer que seja a realização ocorrida através do processo psicoterapêutico é de encargo da dupla e não é um feito do psicoterapeuta. Esse fato fica claro quando reconhecemos que é necessário que o paciente encontre-se aberto e disponível ao processo psicoterapêutico, de outra forma nada pode ser realizado.
Assim, o que quer que seja realizado nesse processo é mérito, ou ainda, responsabilidade da dupla, já que é sempre a partir da função do vínculo. Por um lado é função do vínculo, onde humildemente um aprende a “estar sendo” junto do outro e por outro lado, sendo fator da função do acolhimento que depende da humildade tanto daquele que acolhe quanto do que está sendo acolhido.



BION, W. R. (2004a). ELEMENTOS DE PSICANÁLISE (J. Salomão, trad.; E. H. Sandler e P. C. Sandler, revs.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1963).
HEISENBERG, W. FÍSICA E FILOSOFIA. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.
MARTINO, Renato Dias. ACOLHIDA EM PSICOTERAPIA – 1ª ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2018.     









Fone: 17- 991910375



3 comentários:

Unknown disse...

Gratidão professor Renato , belíssimo texto e muito nutridor me fez muito sentido

Unknown disse...

Excelente texto! Muito bom e enriquecedor, a humildade é imprescindível por parte do analista.

Taciana Marcele Pinto Bernardes da Silva disse...

Que texto!!! Muito bom!