terça-feira, 23 de dezembro de 2025

DO ESPECTRO POLÍTICO DA DIVISÃO - Prof. Renato Dias Martino


Logo de início, parece-me importante deixar claro que este texto não se trata de uma afirmação científica, mas de uma analogia que tenta aproximar uma formulação psicanalítica de uma configuração política.

 Sigmund Freud (1856–1939) propõe duas tendências dentro do âmbito do funcionamento mental: uma tende à união, à junção entre as partes num movimento de integração; a outra tende a separar, a dividir o todo em partes dissociadas. Essa ideia Freud desenvolveu especialmente em ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER (1920). Segundo Freud, essas duas tendências operam concomitantemente, sem que uma anule a outra. No entanto, pode haver a predominância de uma sobre a outra, causando certo desajuste no funcionamento da entidade em questão. À tendência que busca à união Freud chamou de pulsão de vida e à tendência que busca dividir chamou de pulsão de morte. A pulsão de vida tem a função de ligação. “Ocorrendo do interior para o exterior, eclodindo para fora, na ligação com o mundo, com outro (objeto), e também agindo no mundo interno, na integração das partes do eu” (Martino, 2024). A pulsão de morte se manifesta com a fragmentação da personalidade e da percepção do mundo como um todo. “Um movimento que tende à desvinculação das partes, por decorrência da insuficiência na irrigação da libido” (Martino, 2024).

 Esse modelo, que ocorre no âmbito do funcionamento emocional e passa a reger as relações no campo afetivo, também se manifesta na dimensão dos grupos humanos. Essas duas tendências ficam evidentes quando aplicadas aos espectros políticos do que se denominam direita e esquerda. A direita, no modelo do conservadorismo, defende valores como as tradições, a família, a propriedade privada e a ordem estabelecida. Admite mudanças, mas prudentes, graduais e cautelosas, opondo-se a revoluções ou propostas de reformas radicais. Na direita conservadora parece existir certa resistência a mudanças bruscas e revolucionárias e isso parece estar ligada à autopreservação da pulsão de vida. Para que possa haver um bom funcionamento é imperiosa a necessidade de estabilidade, sendo que as mudanças precisam ser cautelosas e ponderadas. Freud falava da pulsão de vida com a função de conservação e integração, e isso se alinha com a ideia de que estabilidade é essencial para o desenvolvimento sustentável e saudável. Isso pretende a coesão social através do cultivo de valores partilhados.

 A direita ainda defende o Estado mínimo, onde a intervenção do governo na economia e na vida dos cidadãos é mínima. Com isso, o Estado tem funções essenciais como segurança, justiça, defesa e relações exteriores, já que, com a estrutura familiar bem estruturada, a liberdade individual e a livre iniciativa geram mais eficiência e desenvolvimento. Um sujeito que pode crescer numa família bem estruturada terá sua personalidade bem estruturada por conta do modelo bem-sucedido. Essa integração faz com que o sujeito se sinta parte integrante do todo, reduzindo sua insegurança frente aos desafios, e isso coincide com as características da função da pulsão de vida. Aponta-se, portanto, que pelo menos esses preceitos destacados aqui estão de acordo com a predominância dessa tendência pulsional. Cada ser humano é único e deve ser respeitado independentemente da cor, raça ou gênero. Isso coincide com um princípio fundamental e universal dos direitos humanos. Quanto mais autonomia para cada cidadão, menor a carga do Estado, que deve cuidar do essencial.

 Já as pautas defendidas pela ideologia política da esquerda estão predominantemente orientadas pela divisão, onde os temas do racismo, feminismo e a causa do trabalhador sinalizam essa separação. A “luta de classes” é um termo central na proposta teórica de Karl Marx (1818–1883), nome mais importante na formulação da esquerda. No marxismo, a luta de classes é o conflito entre diferentes grupos sociais, especialmente burguesia e proletariado, que, segundo Marx, é gerado por conta de interesses econômicos antagônicos. Sendo assim, não me parece absurdo afirmar que o espectro da esquerda parece ser preponderantemente regido pela pulsão de morte. A justificativa para isso está na abordagem da esquerda, no progressismo, sobre a desigualdades estruturais, opressões e injustiças sociais. Ao erguer as bandeiras contra o racismo, o sexismo e a desigualdade de classes, mesmo quando alega apenas ‘denunciar’ divisões já existentes, a esquerda converte a diferença em antagonismo insolúvel e toda identidade em bandeira de combate permanente — produzindo, na prática, uma fragmentação social muito maior do que a integração que supostamente diz buscar. Ora, ao destacar diferenças entre grupos, a esquerda acaba por dividir a sociedade em campos opostos.

 Além disso, a esquerda ganha enorme força em sua militância, já que tem a aderência de pessoas que se sentem excluídas, rejeitadas e oprimidas, o que fortalece as pautas defendidas. Ou seja, um público que se sente dividido do todo, apartado da sociedade. Bem, aquele que não teve a menor condição de conseguir sua propriedade privada é um grande sugestionável a lutar contra esse direito. Alguém que não teve uma família tradicional ou bem estruturada e, ainda assim, conseguiu sobreviver, pode vir a ser convencido de que isso deve ser combatido.

 O movimento de esquerda usa a tática de “dividir para conquistar” (no latim, divide et impera) ao enfatizar divisões sociais, como classe, raça e gênero, para criar conflitos e, assim, alcançar apoio político e obter e manter o controle.

É uma estratégia antiga, não exclusiva do general chines Sun Tzu (544 a.C. – 496 a.C.) em sua obra A Arte da Guerra, mas usada por personalidades como o ditador romano Júlio César (100 a.C. - 44 a.C.) e o estadista francês Napoleão Bonaparte (1769 – 1821). Envolve separar inimigos em grupos menores com o intuito de enfraquecê-los e então dominá-los.

 Diferente da direita conservadora, a esquerda defende um Estado forte e soberano que dá manutenção à vida do cidadão. Esse movimento consiste em quebrar concentrações de poder em entidades menores que não conseguem se opor efetivamente a quem as controla. “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”, assim como na célebre frase de Benito Mussolini (1883–1945). Essa proposta foi adotada, com variações de retórica, por grande parte dos regimes socialistas do século XX — o que revela a convergência prática entre extremos que se dizem opostos. O fascismo não é o oposto do socialismo, mas parece ser seu irmão invejoso que trocou o internacionalismo pela nação. A frase serve ainda para ilustrar a esquerda atual que insiste na narrativa de que o fascismo é uma característica da direita contemporânea.

 A psicanálise nos ensina que o ser humano é narcisista por natureza, portanto, não há como fundamentar realmente, um regime onde se pregue a igualdade social. A partilha saudável é aquela que é espontânea. A partilha, quando imposta, perde sua nobreza. Quando se obriga a partilhar frustra-se o próprio movimento libidinal que a tornaria possível. Converte o dom em mágoa e o receptor em dependente incapaz e raivoso. Pregar igualdade imposta ignora a natureza egoísta, levando a resistências e falhas. A partilha espontânea (como em caridades ou comunidades voluntárias) parece mais alinhada com a pulsão de vida, pois surge de vínculos reais, não de coerção. Isso explica por que tentativas de "igualdade forçada" muitas vezes geram novas desigualdades. Isso fica claro nas elites partidárias em regimes socialistas.

 “Os comunistas acreditam ter descoberto o caminho para nos livrar de nossos males. Segundo eles, o homem é inteiramente bom e bem disposto para com o seu próximo, mas a instituição da propriedade privada corrompeu-lhe a natureza.” (Freud, 1930) 

A esquerda propõe que a propriedade privada traz poder ao indivíduo o torna um opressor daquele que não conseguiu o mesmo. Ainda assim, a hostilidade não é gerada pela propriedade, mas sempre existiu bem pior do que é hoje desde os tempos primitivos, quando a propriedade ainda era insignificante.

 Em última instancia, como a personalidade, quando dominada pela pulsão de morte, caminha para a dissolução ou para o domínio tirânico de um supereu, que se manifesta num “deveria ser” sádico, um povo dividido tem sua autonomia drasticamente reduzida e, fragilizado, deve também padecer. O povo fragilizado e fragmentado tende à anarquia autodestrutiva ou a subordinação a um poder que prometa, falsamente, reunificá-lo.

 

Referência:

 FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1930.

MARTINO, Renato Dias. Pensando melhor a psicanálise: do saber ao estar sendo


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