quinta-feira, 3 de março de 2011

O real e a idealização (do real)

O real e a idealização (do real)
Renato Dias Martino

Aphrodite And Eros - 1917 -
Henri Camille Danger
O conceito de desejo está no Dicionário Aurélio (2002) definido como ato ou efeito de desejar; vontade de possuir ou de gozar; anseio, aspiração, cobiça, ambição; vontade de comer ou beber; apetite sexual. Quando nos propomos a cogitar sobre tao fato, falamos da incoscequencia de Eros (deus do amor), filho de Aphrodite (deusa da beleza). O mito de Eros que na primeira fase de sua vida, permanece uma criança pequena, mesmo com o passar dos anos.
Dentro de sua etimologia, a palavra desejo, tem sua origem do latim desidiu, que tem seu inverso em considiu. A palavra sidiu ou ainda siderare, quer dizer astro. E enquanto con traz a referencia de vínculo, des traz a ideia de desvinculação. Logo estamos falado de estar, ou não estar ligado aos astros. Ou ainda, consultar os astros (assim como os gregos faziam por meio do oraculo), ou tomar certo caminho desconsiderando o que eles tem a nos dizer. Dessa forma, fica claro que ao desejarmos algo, nos tornamos responsáveis por isso e abandonamos a opinião dos astros, quanto a isso.
Benedito Espinoza (1632-1677)
Ora, se a proposta é de falarmos sobre o desejo, então estaremos cogitando sobre certa tensão que indica um fim. Quem deseja, o faz em relação a algo, que por sua vez, trará o fim do desejo. Esse fim está intimamente ligado a um pressuposto de carência. Quero dizer que, o desejar é resultado do sentimento da falta de algo. Sendo assim, o desejo torna-se uma característica clara do ser humano. O humano, mortal que se encontra no pólo oposto dos deuses. Para Benedito Espinoza (1632-1677), um dos grandes pensadores do século XVII, dentro da chamada Filosofia Moderna, a imperfeição repousa na perspectiva do humano e o define como tal.
O desejo é uma classe de sentimento, ou de certo movimento mental, que muitas vezes mesmo irracional, em sua forma inconsciente emergem tomando a forma de nossas escolhas. A ideia é que o desejo é um fluxo muito forte de libido (energia psíquica) e carrega em si, muito dos conteúdos impensados e impregnados de um narcisismo pré-maturo. Assim, um pensamento que tenha nascido dessa forma, pré-maturo já agia em no funcionamento da mente, mesmo sem ainda poder ser chamado de pensamento. Esse fato revela-se importante na medida em que muito perigosa é a ação ausente da reflexão. O agir sem pensar.

A psicanálise nos mostrou com muita clareza que o desejo é definido pela sensação de perda de algo que se foi. E se concordamos nessa afirmação, logo, poderíamos descrever que o objeto de desejo encontra-se no passado. Isso corresponde a dizermos que quem deseja, deseja, pelo menos em certa medida, a repetição de algo que perdeu no passado. Isso se torna de maior proporção se nos lembrarmos que a perda sempre inclui certa culpa de não ter cuidado daquilo que se perdeu. Assim, podemos afirmar que o desejo guarda sempre uma cota de passado e isso é representado nas experiências psíquicas, pela memória.

Tânatos
Abre-se então certa condição que nos permitiria afirmar, que o desejo encontra-se impregnado com das forças de Tânatos (o deus grego da morte) dentro de sua perspectiva de pulsão de morte. Busca sempre, em certa medida o retorno em busca de algo perdido, por mais que se encontre regido pelas graças de Eros (o deus grego do amor) no conceito freudiano de pulsão de vida, em seus impulsos na direção do mundo externo. Percebemos que memória e desejo estão muito próximos e que, a forma como se pode ter certa concepção de memória coincide diretamente no que se tem concebido sobre o desejo. Em sua celebre obra Interpretação dos sonhos de 1900, Sigmund Freud (1856-1939) propõe a ideia de que a memória é o desejo no passado e se concordarmos quanto a isso, poderíamos formular que, se a memória é desejo do passado, então o desejo é também, uma espécie de memória do futuro.
Sigmund Freud (1856-1939)
De qualquer forma, o desejo, então é algo que existe para ser satisfeito, contudo, ainda assim, só existe enquanto se está frustrado.
Entretanto, deixemos temporariamente a situação da satisfação de lado, com a proposta de retornarmos mais tarde e cuidar dessa hipótese com mais cuidado e dediquemos então os olhares para a situação da frustração. Pelo menos a priori, abrem-se, dois caminhos, o de enfrentar a tarefa do reconhecimento da realidade, ou sustenta-se a fantasia até onde ela possa ser sustentada.


Friedrich Nietzsche (1844-1900)
‘Eu fiz isso’, diz minha memória.
‘Eu não posso ter feito isso’,
diz meu orgulho, e permanece inflexível.
Por fim _ a memória cede.'
Friedrich Nietzsche (1844-1900) – Além do Bem e do Mal (1886).

Essa questão se torna de grande importância se estivermos falando em aspectos condizentes à luta diária, onde exista um trabalho de capacitação emocional em no sentido do aceitar, respeitar, ser sincero e assim, tornar-se capaz de amar o real, ou, ligar-se afetivamente ao outro. Falo aqui de vínculo.

O objeto de desejo nunca é real, isso por que nunca desejamos o objeto real, mas aquilo que esperávamos que fosse, o ideal. Na realidade tendemos a desvaloriza o objeto de desejo, assim que se torna real. Isso por que se tornar real limita as qualidades e possibilidades do objeto, o que não ocorre com o ideal. Às vezes, levamos isso a tal conseqüência, que nos conduz a desistir de certo objeto, por não atender nossas expectativas. É como se disséssemos: “Se não é como eu desejava não importa pra mim”. Ou seja, a realidade não interessa o que interessa é o que se imaginava ser essa realidade. Assim que o real se revela é logo descartado. Ou ainda, por outro lado, num ato de violência para com a realidade, podemos forçar o objeto a se tornar aquilo que gostaríamos que fosse.
Immanuel Kant (1724-1804)
O que conduz essa linha de pensamento é o fato de que na maioria do tempo somos impulsionados por paixões, ou seja, idealizamos (fantasia) algo e conseqüentemente passamos a odiar o seu extremo oposto. Forma perigosa de se conduzir a vida, pois, de tal modo, não se pode conhecer coisa nenhuma. Deixamos de nos aproximamos de certas “coisas” por enxergá-las sendo muito maiores que nós e, a partir do mesmo modelo de funcionamento, evitamos outras por nos julgarmos muito superiores a elas. Na perspectiva de Immanuel Kant (1724-1804) conduzir escolhas execencialmente pelo desejo é um modo doentio de viver, então dispensar o desejo seria a condição sine qua non da prática daquilo que chamou de moral e que pressupõe certa indiferença em relação à satisfação e ao prazer. Na proposta edípica de Freud é justamente a renuncia do desejo pela mãe que liberta para o pensar. Na capacidade de viver a posição do terceiro excluido é que se inicia as realizações no mundo. Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) psicanalista francês propoe o Nome-do-Pai como simbolo do corte no desejo pela mãe. O que adequa o vínculo entre filho e mãe, libertando do pesadelo incestuoso.
Wilfred R. Bion (1897-1979)
Na apreciação psicanalítica do indiano naturalizado inglês, Wilfred R. Bion (1897-1979) a questão se encontra na perspectiva daquilo que poderia proporcionar, definir e sustentar na qualidade do vínculo que se pode ter com a realidade. Bion propõe a cesura do desejo, priorizando o que chamou de ‘O’ da experiência. O reencontro com a realidade depois da simbolização. O símbolo permite que se tolere o vazio e isso coincide com a privação da satisfação imediata do desejo. Ai está a chance para que se comece a pensar. A presença excessiva de certo desejo por algo, impede que se possa conhecê-lo na realidade, ou ainda, paralisa qualquer que seja o esforço na direção de entendê-lo em sua forma integra.

A conseqüência inevitável desse funcionamento baseado na paixão está justamente na cristalização ou enrijecimento daquilo que limita o que é do eu (como o desejo), daquilo que é do mundo, do não-eu, do outro, em ultima instancia, da realidade (que dificilmente coincide com o desejo).
Congela e compromete severamente aquilo que nos leva a experimentar possibilidades, condição indispensável à criatividade. Experiências que são exercícios de fundamental importância na medida em que capacita de referencias que nos permitem distinguir não só o que poderia ser o mundo externo, mas, conseqüentemente, o que pode realmente podemos ser, ou melhor falando, o que pode ser o eu real. Falo da inexorável luta entre o que é real e o que se deseja que seja, ou até, o que se teme que possa ser (já que o medo é filho do desejo). A questão está na ordem do que se encontra entre o real e o imaginário. Um processo de rigidez nesse nível é inevitavelmente gerador do que poderíamos denominar de pseudo-sabedoria ou mesmo certa sabedoria psicótica. Uma classe de informações sobre o mundo que só pode manter-se através da imposição. Um saber que deve contar com a defesa de certo escudo chamando arrogância.
Enquanto essa pseudo-sabedoria se localiza em certo nível superficial, encontramos um sujeito turrão e teimoso, conseqüentemente ignorante (ignorante de sua própria ignorância). Contudo, mesmo assim é alguém que consegue a duras penas, algumas realizações no mundo, já que (mesmo chateado com isso) mantém certo vínculo com a realidade. No entanto, se esse modelo de “saberes” passa a ser atribuído a elementos de maior profundidade da personalidade, criam-se características psicóticas na forma de se conduzir a vida. O outro nunca é o outro, mas, sempre o que se deseja que fosse.

Voltemos agora os olhares para a satisfação completa do desejo. Este vértice conduz a morte da busca e nos remete ao estado de inércia. Na satisfação total não existe reflexão e não é difícil chegar a essa conclusão quando nos lembramos de um bebê que logo adormece assim que se satisfaz com o seio da mãe. Totalmente satisfeitos deixamos de pensar, deixamos de existir. Só seguimos em frente se tivermos a consciência do que perdemos.


Bion, W. R. (b). Dois papéis: A grade e a cesura. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977
__Transformações - mudança do aprendizado ao crescimento. Rio de Janeiro, Imago,
(1970)
Chaui, M. Convite à Filosofia – 14° Edição – Editora Ática, São Paulo, 2010
Dicionário Aurélio, RJ, Nova Fronteira, 2002.
Freud, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard Brasileira, IMAGO (1969-80)
KANT, I. Crítica da Razão Pura. 5° vol. - Editora Formar Ltda: São Paulo. 1985.
____ Crítica da Razão Prática. 5° vol. - Editora Formar Ltda: São Paulo. 1985.
NIETZSCHE, F.Além do bem e do mal – Editora Nova Cultural: São Paulo, 1999.


Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
Fone: 17-30113866
renatodiasmartino@hotmail.com
http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com

3 comentários:

Jacqueline Ferreira disse...

Maravilhoso!
Adorei!

Prof. Renato Dias Martino disse...

rs!
Maravilhoso é ter você sempre aqui, comentando minha publicações.
Muito obrigado!

Kátia Cilene disse...

Prof, conheci seu texto via Jessica Marques. Esse texto é perfeito, digno de muita reflexão. Obrigada, por disponibilizar tanto coisa boa para nós!🙏