A questão da real utilidade
do diagnóstico nos transtornos mentais ser questionável para aquele que
realmente dedica-se ao cuidado no acolhimento, é um tema que venho
desenvolvendo há algum tempo e esse ensaio é mais uma tentativa de cogitação
sobre esse assunto. Os avanços dos estudos psicanalíticos nos permitiram
expandir as possibilidades e trazer a baila questões importantes como é o caso
da diferenciação e divisão entre sujeitos mentalmente comprometidos e sujeitos
saudáveis. A psicanálise nos auxilia a reconhecer outro vértice de pensamento,
onde o que se admite é o quanto da mente de cada um de nós está
comprometido.
Enquanto se raciona o mundo
em pessoas normais e pessoas mentalmente comprometidas corre-se o risco da patologisação
das características humanas. Entretanto mesmo sendo característica do que se
configura na sociedade contemporânea, ainda assim proponho refletirmos sobre
esse tema. Como que na provável tentativa ilusória de controle sobre o
funcionamento da mente, mas que apesar da promessa de domínio, acabam por
promover uma padronização mórbida, numa desejável e confortável fantasia de
normalidade.
O Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais ou o DSM, compendio psiquiátrico que
identifica doenças mentais e as cataloga, descrevendo seus principais sintomas,
vem ganhando mais itens em suas nomenclaturas patológicas a cada nova edição.
Nas novas catalogações
psicopatológicas da última edição, o DSM-V temos relacionados o luto
(Transtorno de Depressão Maior), a gula (Transtorno de Compulsão Alimentar
Periódica) e também a TPM (Transtorno Disfórico Pré-Menstrual).
Com isso o que
se revela a patologisação de processos e características comuns no sujeito
humano, na criação de uma padronização do que pode ser realmente saúde e o que
deve ser visto como doença.
Bem, assim o que se percebe é
a tentativa infecunda de controle sobre as manifestações humanas, numa
normalidade arranjada por administrações químicas aliadas à modernas propostas
terapêuticas de doutrinação dos comportamentos, na propostas de tarefas de
“readequação comportamental”, conforme um padrão conveniente ao mercado de
consumo.
Sigmund Freud (1856-1939) |
" Essas duas descobertas – a de que a vida dos
nossos instintos sexuais não pode ser inteiramente domada, e a de que os
processos mentais são, em si, inconscientes, e só atingem o ego e se submetem
ao seu controle por meio de percepções incompletas e de pouca confiança -,
essas duas descobertas equivalem, contudo, à afirmação de que o ego não é o
senhor da sua própria casa”. (Freud,
1917)
Assim Sigmund Freud
(1856-1939) nos orienta em seu importante ensaio UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA
PSICANÁLISE, entretanto bem antes da criação da psicanálise é possível
encontrar certa busca de expansão nessa direção.
Terêncio Afro (195-185 a.C. - 159 a.C.) |
“Sou homem: nada do que é humano me é estranho” (no original em latim “Homo sum: nihil humani a me alienum puto”) é um ensinamento que
Publio Terêncio Afro (195-185 a.C. - 159 a.C.), poeta romano registra no verso
77 de sua obra Heautontimorumenos. Terêncio já havia alertado sobre a
incapacidade do ser humano em se responsabilizar por si próprio. Essa busca
consiste em certa expansão para um nível onde cada um de nós guarda uma cota da
angústia de toda humanidade.
Partes indesejáveis do eu
No texto de 1924: “Neuroses e
Psicoses” Freud afirmou que na neurose, o ego em virtude da submissão á
realidade, suprime uma parte das suas pulsões enquanto que nas psicoses o mesmo
ego retira seu contato com a realidade. Pois bem, foi o mesmo Sigmund Freud que
revelou-nos sobre a cota de neurose que cada um de nós carrega, desenvolvida
sobre tudo pelo simples fato de vivermos sob os domínios das regras
civilizatórias. O pai da psicanálise escreve em seu texto “Sobre o Inicio do
Tratamento” de 1913, que é parte dos Artigos Sobre Técnica, sobre a dificuldade
que encontrava na tarefa do diagnóstico de seus pacientes, candidatos a
analise: “Não concordo que seja sempre
possível fazer uma distinção tão facilmente” no que se refere à neurose e a
psicose.
Melanie Klein (1882–1960) |
No entanto, foi a partir dos
estudos da escola inglesa, sobretudo orientados pelas idéias de Melanie Klein
(1882–1960), que a compreensão do funcionamento psíquico psicótico, ou
narcisista, encontrou maior clareza, assim como instrumentos no manejo clínico
de pacientes que apresentam esse quadro. Através de nomes como Wilfred Ruprecht
Bion (1897 - 1979), um dedicado discípulo de Klein, foi possível o
desenvolvimento da teoria psicanalítica na criação de métodos de analise que
abrangesse recursos para lidar com essa classe de pacientes mais comprometidos,
assim como o reconhecimento de episódios psicóticos que ocorrem em qualquer ser
humano dito mentalmente saudável, pelo menos a priori.
Analistas que se arriscam
nessa árdua tarefa foram conduzidos a repensarem a colocação original de Freud,
que muito provavelmente fora conduzido por fatores que vão desde questões
pessoais, como a análise de sua própria personalidade, até o questionamento
impiedoso da ciência que cobrava resultados claros. Freud via dificuldade no
estabelecimento da transferência na relação com pacientes mais comprometidos
com as áreas psicóticas da mente.
Porem, apesar de todo o
pessimismo quanto à psicanálise das psicoses, o próprio Freud deixara o caminho
preparado quando propõe as características do narcisismo primário, a condição
de funcionamento mental nesse período da vida do bebê e o quanto esse modelo
primitivo permeia o desenvolvimento saudável da mente e das relações,
aparecendo com mais ou menos frequência também na vida adulta.
Vários foram os fatores que
trouxeram novos vértices até que se reconhecesse essa expansão no alcance da
psicanálise. A necessidade de se desfazer a nítida diferenciação entre
pacientes que apresentassem um quadro psicótico daqueles que revelassem um
diagnostico neurótico, talvez fora uma das premissas do desenvolvimento dessa
nova tendência clínica. Pensadores da psicanálise trouxeram novas ideias que
contribuíram enormemente para o abandono da necessidade de precisão na
distinção psicopatológica.
Esse movimento ocorre na teoria,
pois na prática clínica foi possível perceber que só poderá ser cumprida a
função psicanalítica, sendo o analista alguém verdadeiro (sinceridade) e
acolhedor (afeto). Só aquilo que se é
capaz de ser é o que pode influenciar numa real experiência emocional
reparadora. Bem, o analista real, sem dissimulações ou defesas ásperas, deve
lidar com a realidade do paciente, independente de como esteja sendo no momento
do atendimento.
Uma parte de cada um de nós
Em 1957 na obra,
“Diferenciação entre a Personalidade Psicótica e a Personalidade Não
Psicótica”, Wilfred R. Bion, propõe um vértice de pensamento onde não se
reconhece mais um sujeito psicótico, mas uma certa área psicótica presente na
mente de cada sujeito. O reconhecimento dessa faceta que não mantem conexão com
a realidade externa, nele mesmo, ou seja, a descoberta de certa parte psicótica
em sua própria mente, seria para Bion (1962) o que capacitaria analistas a
receber e acolher pacientes que apresentem esse funcionamento mental.
Assim, a saúde mental passa a depender da
capacidade de reconhecimento do lado 'louco' do eu. Bion propõem que tal
diferenciação depende da fragmentação em pedaços mínimos do todo da
personalidade, que recusam as influências da realidade e que amiúde atacam o
vínculo que se possa manter com a verdade. Assim, apoiado pelas intuições
kleinianas, Bion propõe que na parte psicótica da personalidade a repressão,
própria do funcionamento neurótico, é substituída por identificações
projetivas.
Assim como a necessidade da
capacitação emocional do analista em reconhecer suas próprias partes
psicóticas, a criação de novos conceitos como é o caso da ‘identificação
projetiva’, introduzido por Klein, foram de grande importância na compreensão
de como funcionaria a situação transferencial nos pacientes mais comprometidos
com as partes psicóticas da mente. Um formato especial de transferência se
estabelece, com a identificação projetiva de aspectos primitivos de ligação com
o objeto. Tentam uma reedição, emergindo agora na relação com o psicoterapeuta.
Funcionamos o tempo todo de
maneira primitiva em alguma proporção. Seja no nível neurótico, onde por uma
dependência à realidade externa, suprimimos uma parte das pulsões, ou seja, no
nível psicótico, quando retiramos o contato com a realidade externa, nos
entregando às ilusões de satisfação. Ainda assim, mantemos uma cota de ligação
com a realidade externa que somos capazes de sustentar formas saudáveis, mais
evoluídas e expansivas de vínculo e é através dessa espécie de ligação que
alimentamos nosso bom funcionamento mental.
Prof. Renato Dias Martino
http://www.pensar-seasi-mesmo.blogspot.com.br/
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