quarta-feira, 15 de julho de 2015

Do psicótico que há em nós

A questão da real utilidade do diagnóstico nos transtornos mentais ser questionável para aquele que realmente dedica-se ao cuidado no acolhimento, é um tema que venho desenvolvendo há algum tempo e esse ensaio é mais uma tentativa de cogitação sobre esse assunto. Os avanços dos estudos psicanalíticos nos permitiram expandir as possibilidades e trazer a baila questões importantes como é o caso da diferenciação e divisão entre sujeitos mentalmente comprometidos e sujeitos saudáveis. A psicanálise nos auxilia a reconhecer outro vértice de pensamento, onde o que se admite é o quanto da mente de cada um de nós está comprometido. 

Enquanto se raciona o mundo em pessoas normais e pessoas mentalmente comprometidas corre-se o risco da patologisação das características humanas. Entretanto mesmo sendo característica do que se configura na sociedade contemporânea, ainda assim proponho refletirmos sobre esse tema. Como que na provável tentativa ilusória de controle sobre o funcionamento da mente, mas que apesar da promessa de domínio, acabam por promover uma padronização mórbida, numa desejável e confortável fantasia de normalidade.

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ou o DSM, compendio psiquiátrico que identifica doenças mentais e as cataloga, descrevendo seus principais sintomas, vem ganhando mais itens em suas nomenclaturas patológicas a cada nova edição.
Nas novas catalogações psicopatológicas da última edição, o DSM-V temos relacionados o luto (Transtorno de Depressão Maior), a gula (Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica) e também a TPM (Transtorno Disfórico Pré-Menstrual).
Com isso o que se revela a patologisação de processos e características comuns no sujeito humano, na criação de uma padronização do que pode ser realmente saúde e o que deve ser visto como doença.

Bem, assim o que se percebe é a tentativa infecunda de controle sobre as manifestações humanas, numa normalidade arranjada por administrações químicas aliadas à modernas propostas terapêuticas de doutrinação dos comportamentos, na propostas de tarefas de “readequação comportamental”, conforme um padrão conveniente ao mercado de consumo.

Sigmund Freud
(1856-1939) 
" Essas duas descobertas – a de que a vida dos nossos instintos sexuais não pode ser inteiramente domada, e a de que os processos mentais são, em si, inconscientes, e só atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de percepções incompletas e de pouca confiança -, essas duas descobertas equivalem, contudo, à afirmação de que o ego não é o senhor da sua própria casa”. (Freud, 1917)

Assim Sigmund Freud (1856-1939) nos orienta em seu importante ensaio UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, entretanto bem antes da criação da psicanálise é possível encontrar certa busca de expansão nessa direção.

Terêncio Afro
(195-185 a.C. - 159 a.C.)
“Sou homem: nada do que é humano me é estranho” (no original em latim “Homo sum: nihil humani a me alienum puto”) é um ensinamento que Publio Terêncio Afro (195-185 a.C. - 159 a.C.), poeta romano registra no verso 77 de sua obra Heautontimorumenos. Terêncio já havia alertado sobre a incapacidade do ser humano em se responsabilizar por si próprio. Essa busca consiste em certa expansão para um nível onde cada um de nós guarda uma cota da angústia de toda humanidade.


Partes indesejáveis do eu

No texto de 1924: “Neuroses e Psicoses” Freud afirmou que na neurose, o ego em virtude da submissão á realidade, suprime uma parte das suas pulsões enquanto que nas psicoses o mesmo ego retira seu contato com a realidade. Pois bem, foi o mesmo Sigmund Freud que revelou-nos sobre a cota de neurose que cada um de nós carrega, desenvolvida sobre tudo pelo simples fato de vivermos sob os domínios das regras civilizatórias. O pai da psicanálise escreve em seu texto “Sobre o Inicio do Tratamento” de 1913, que é parte dos Artigos Sobre Técnica, sobre a dificuldade que encontrava na tarefa do diagnóstico de seus pacientes, candidatos a analise: “Não concordo que seja sempre possível fazer uma distinção tão facilmente” no que se refere à neurose e a psicose.

Melanie Klein (1882–1960)
No entanto, foi a partir dos estudos da escola inglesa, sobretudo orientados pelas idéias de Melanie Klein (1882–1960), que a compreensão do funcionamento psíquico psicótico, ou narcisista, encontrou maior clareza, assim como instrumentos no manejo clínico de pacientes que apresentam esse quadro. Através de nomes como Wilfred Ruprecht Bion (1897 - 1979), um dedicado discípulo de Klein, foi possível o desenvolvimento da teoria psicanalítica na criação de métodos de analise que abrangesse recursos para lidar com essa classe de pacientes mais comprometidos, assim como o reconhecimento de episódios psicóticos que ocorrem em qualquer ser humano dito mentalmente saudável, pelo menos a priori. 

Analistas que se arriscam nessa árdua tarefa foram conduzidos a repensarem a colocação original de Freud, que muito provavelmente fora conduzido por fatores que vão desde questões pessoais, como a análise de sua própria personalidade, até o questionamento impiedoso da ciência que cobrava resultados claros. Freud via dificuldade no estabelecimento da transferência na relação com pacientes mais comprometidos com as áreas psicóticas da mente.

Porem, apesar de todo o pessimismo quanto à psicanálise das psicoses, o próprio Freud deixara o caminho preparado quando propõe as características do narcisismo primário, a condição de funcionamento mental nesse período da vida do bebê e o quanto esse modelo primitivo permeia o desenvolvimento saudável da mente e das relações, aparecendo com mais ou menos frequência também na vida adulta.

Vários foram os fatores que trouxeram novos vértices até que se reconhecesse essa expansão no alcance da psicanálise. A necessidade de se desfazer a nítida diferenciação entre pacientes que apresentassem um quadro psicótico daqueles que revelassem um diagnostico neurótico, talvez fora uma das premissas do desenvolvimento dessa nova tendência clínica. Pensadores da psicanálise trouxeram novas ideias que contribuíram enormemente para o abandono da necessidade de precisão na distinção psicopatológica.

Esse movimento ocorre na teoria, pois na prática clínica foi possível perceber que só poderá ser cumprida a função psicanalítica, sendo o analista alguém verdadeiro (sinceridade) e acolhedor (afeto).  Só aquilo que se é capaz de ser é o que pode influenciar numa real experiência emocional reparadora. Bem, o analista real, sem dissimulações ou defesas ásperas, deve lidar com a realidade do paciente, independente de como esteja sendo no momento do atendimento.

Uma parte de cada um de nós

Em 1957 na obra, “Diferenciação entre a Personalidade Psicótica e a Personalidade Não Psicótica”, Wilfred R. Bion, propõe um vértice de pensamento onde não se reconhece mais um sujeito psicótico, mas uma certa área psicótica presente na mente de cada sujeito. O reconhecimento dessa faceta que não mantem conexão com a realidade externa, nele mesmo, ou seja, a descoberta de certa parte psicótica em sua própria mente, seria para Bion (1962) o que capacitaria analistas a receber e acolher pacientes que apresentem esse funcionamento mental. 
Assim, a saúde mental passa a depender da capacidade de reconhecimento do lado 'louco' do eu. Bion propõem que tal diferenciação depende da fragmentação em pedaços mínimos do todo da personalidade, que recusam as influências da realidade e que amiúde atacam o vínculo que se possa manter com a verdade. Assim, apoiado pelas intuições kleinianas, Bion propõe que na parte psicótica da personalidade a repressão, própria do funcionamento neurótico, é substituída por identificações projetivas.

Assim como a necessidade da capacitação emocional do analista em reconhecer suas próprias partes psicóticas, a criação de novos conceitos como é o caso da ‘identificação projetiva’, introduzido por Klein, foram de grande importância na compreensão de como funcionaria a situação transferencial nos pacientes mais comprometidos com as partes psicóticas da mente. Um formato especial de transferência se estabelece, com a identificação projetiva de aspectos primitivos de ligação com o objeto. Tentam uma reedição, emergindo agora na relação com o psicoterapeuta.


Funcionamos o tempo todo de maneira primitiva em alguma proporção. Seja no nível neurótico, onde por uma dependência à realidade externa, suprimimos uma parte das pulsões, ou seja, no nível psicótico, quando retiramos o contato com a realidade externa, nos entregando às ilusões de satisfação. Ainda assim, mantemos uma cota de ligação com a realidade externa que somos capazes de sustentar formas saudáveis, mais evoluídas e expansivas de vínculo e é através dessa espécie de ligação que alimentamos nosso bom funcionamento mental.






Prof. Renato Dias Martino​
http://www.pensar-seasi-mesmo.blogspot.com.br/

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