O que de mim fica em
você enquanto eu não estou presente?
O ato de encontrar-se
novamente é o tema desse pequeno ensaio. Uso aqui o termo reencontro como sendo
a situação onde houve uma aproximação que é sucedida por um afastamento e essa
experiência então, possibilita o reencontro. Entretanto o reencontro tratado
aqui não é o fim do processo, já que outros distanciamentos ocorrerão. Quando
partimos desse pressuposto de que existe um processo acontecendo, em que o
reencontro não é desfecho, mas é elemento de um processo que não interrompe de
acontecer, é então possível reconhecer que na realidade, a ocorrência desse
ciclo é sinal de que o vínculo esta se desenvolvendo.
Os sites de
relacionamento e redes sociais virtuais como o Facebook, trouxeram grande
chance para o reencontro de pessoas que há tempos não se viam. Muitos deles
importantes, já que os vínculos podem manter-se independentes do tempo e da
distância.
É justamente através do
vínculo que nos mantemos ligados ao mundo externo ou à realidade que existe
independente de nossa vontade. É também através dos vínculos que nutrimos nossa
autoestima, mas, além disso, é por onde podemos nos intoxicar emocionalmente. É
o que permite estarmos ligados à aquilo que está fisicamente ausente. Isso só é
possível por conta da recordação. Experiências bem sucedidas com essa realidade
que ora está sensorialmente ausente, mas que deixara uma boa impressão
emocional. Essa questão da perpetuação do vínculo depende particularmente e
diretamente da capacidade de simbolizar. Quando nos é possível introjetar a
imagem do outro de maneira verdadeira e afetiva, o vínculo é preservado e a
recordação é um sinal de que isso valeu.
Em grego a palavra
"symbolon" é derivada do verbo "symbalo" que significa
reunir, ou mais precisamente lançar junto, a possibilidade de concórdia. O
contrário é a "diabolé" que constitui divisão e promove a discórdia.
O conceito de símbolo tem uma concepção clássica na Odisseia de Homero, poeta
épico da Grécia antiga. A Odisseia relata o retorno de Ulisses, herói da guerra
de Troia. Depois de vinte anos ele volta para sua esposa Penélope:
"O
símbolo era um objeto primitivamente uno, que duas ou mais pessoas repartem
entre si no momento em que vão separar-se por um longo tempo. Elas conservam
seu fragmento, em sinal dos vínculos que as ligavam. Quando mais tarde se
reencontram, cada qual se serve de seu fragmento para fazer-se reconhecer.
Nesse reconhecimento, elas se identificam por um nome novo, como sinal da
história que viveram em separado, mas também do novo lugar e da nova função que
vão ser os seus no todo igualmente renovado".
Sigmund Freud (1856- 1939) |
Nos primeiros estudos
de Sigmund Freud (1856- 1939) sobre observação de bebês, ele percebeu a
ansiedade da criança na ausência da mãe. Notou as brincadeiras de sumir e
aparecer como um ensaio para ausências cada vez mais longas que o bebê terá de
suportar.
“Certo
dia, fiz uma observação que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um
carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe
ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel
como se fosse um carro. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e
com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de
maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo em que o
menino proferia seu expressivo ‘o-o-ó’. Puxava então o carretel para fora da
cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um
alegre ‘da‘ (‘ali’). Essa, então, era a brincadeira completa: desaparecimento e
retorno”. (Freud
em ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER, 1920)
Isso quer dizer que
quanto maior for a preparação para esse momento de separação, mais viva estará
a imagem simbolizada da mãe no mundo interno do bebê; consequentemente e
posteriormente esse modelo de experiência se aplicará com amigos e outras
pessoas amadas.
Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979) |
Bion (1897-1979), (1962/91) descreve
a capacidade de rêverie como sendo “um
estado mental aberto à recepção de quaisquer objectos do objecto amado, capaz
de receber as identificações projectivas do bebé, sejam elas sentidas como boas
ou más” (p. 36). Este estado se inicia no sonho e nas brincadeiras das
menininhas que um dia serão mães.
Com a rêverie a mãe
realiza um processo mental comparável ao procedimento digestivo no nível
fisiológico/orgânico. A mãe se encontra
na função de sonhar o sonho do bebê. No significado da palavra rêve = sonho.
Através do processo de rêverie o bebé adquire uma sensação de continuidade
existencial que servirá ao seu próprio processo de pensar. O conceito de
rêverie proposto por Bion encontra-se relacionado com a imaginação, os
devaneios, num estado particular de consciência receptiva. Receptiva à
transformação que ocorre no bebê. A mãe reencontra o bebê e em cada reencontro
ele cresceu um pouquinho. Com a capacidade de rêverie que ficou não foi somente
o ‘saber’ armazenado na memória, mas o ‘ser’ que brota na recordação. A
necessidade do reencontro é inerente ao desenvolvimento e o funcionamento
saudável da mente.
Homero |
A necessidade natural
do reencontro tem no nível dos sonhos uma chance de elaboração. É possível o
reencontrar aquilo que desejávamos, mas que por algum motivo é impossível
reencontrar na realidade, assim o fazemos através dos sonhos. Reencontramos
nossos afetos no sonho, entretanto de forma mais sincera e nem sempre muito
compreensível. O que define o conteúdo dos sonhos é justamente a necessidade do
reencontro. Um reencontro consigo mesmo, mas que sob a influência onírica
configura-se num funcionamento de características infantis. Desprovido das
mentiras e dissimulações que os adultos aprenderam e aperfeiçoam para conviver
bem em sociedade.
“O
que um dia dominou a vida de vigília, quando a psique era ainda jovem e
incompetente, parece agora ter sido banido para a noite – tal como as armas
primitivas abandonadas pelos homens adultos, os arcos e flechas, ressurgem no
quarto de brinquedos. O sonho é um ressurgimento da vida anímica infantil já
suplantada. Esses métodos de funcionamento do aparelho psíquico, que são
normalmente suprimidos nas horas de vigília, voltam a tornar-se atuais na
psicose e então revelam sua incapacidade de satisfazer nossas necessidades em
relação ao mundo exterior.” (Freud, em A
INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS, 1900).
Antoine de Saint-Exupéry ( 1900 - 1944) |
Essa inocência é o que
povoa o mundo dos sonhos num reencontro com a criança em cada um de nós. Muitas
vezes me questionei se não foi disso que Antoine de Saint-Exupéry (1900 - 1944) tratava em seu magnífico “Pequeno
Príncipe”.
A recordação funciona
como um reencontro onde a experiência é oferecida mais uma vez ao coração. Mas
no reencontro parte dos elementos se mantêm invariantes como algo que permanece
para promover a identificação no reconhecimento, entretanto uma outra parte dos
componentes compartilhados se transforma. O reencontro dos discípulos com Jesus
Cristo no terceiro dia, a Páscoa. Assim como nos lembra S. Lucas: “Assim está
escrito que o Messias havia de morrer e ressuscitar dentre os mortos, ao
terceiro dia” (Lc 24,46).
São Lucas |
O reencontro pode ainda
estar configurado sob emoções negativas e impossibilidade de simbolização. Isso se dá por conta de experiências mal
sucedidas onde o afastamento foi povoado de raiva (ódio) e incapacidade de afeto
na tolerância quanto ao afastamento. O reencontro então possibilita reviver
tanto momentos saudáveis de desenvolvimento, quanto as faltas e falhas, que
talvez não tenham tido chances de serem melhor elaboradas. Assim surgem defesas
ou o que chamamos em psicanálise de resistência. O reencontro com pessoas não
tão queridas, ou com aquelas que não podem contribuir com afeto, sinceridade, e
que muitas vezes contaminam e intoxicam, também propõe um novo olhar para um
relacionamento que clama por nova chance de serem repensados, certificando a necessidade
da distância.
Uma oportunidade de
elaborar a imagem do outro que fica no eu. É uma chance então de se revelar o
verdadeiro amigo: aquele que tivera chance de ser conhecido e reconhecido como
uma imagem boa. A capacidade de se manter relacionado com alguém onde a
combinação de afeto e sinceridade é o que permeia a comunicação e define a
saúde da experiência. O momento internalizado ou do simbolizar faz com que
possamos passar anos longe de alguém sem que esta imagem seja destruída em nós.
Insisto no símbolo que permite conservar algo no coração mesmo na
impossibilidade de confirmação com os órgãos dos sentidos. A confiança, mesmo
depois de muito tempo, pode se manter.
“A
con-fiança que significa fiança compartilhada, mantida pelas partes, nutrida
pela fé e assim geradora da fidelidade. O fio que permite, depois do conhecer,
ausentar-se para que assim no regresso seja possível o re¬conhecer.” (Martino, 2014)
Penélope |
Na “Odisséia de
Homero”, o mito de Ulisses viaja por vinte anos e sua esposa Penélope passa a
fiar, e a permanência deste fio (vínculo) é o que permitiu a espera e trouxe
seu amado de volta. Durante os vinte anos, tanto um como outro estiveram
expostos a vários ataques que ameaçavam este vínculo. A experiência que reúne
amor e verdade, é onde se sedimenta um relacionamento de confiança, e isso é
alcançado sempre com a boa convivência à demanda de anos.
Bion, W. R. Aprender com a Experiência. Imago, Rio de Ja¬neiro, 1991 (1962).
Freud. S. ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER,
Imago - 1920.
Freud. S. INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS,
1900.
HOMERO - Odisséia, Tradução, Carlos
Alberto Nunes. 2. ed. São Paulo: Ediouro, 2009.
Martino, R. D. O amor e a expansão do
pensar : das perspectivas dos vínculos no desenvolvimento da capacidade
reflexiva / 1. ed. - São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora,
2013.
Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
prof.renatodiasmartino@gmail.com
http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com.br
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