domingo, 11 de julho de 2021

VÉRTICES EPISTEMOLÓGICOS

 

O ser humano é uma criatura capaz de assimilar conhecimento, de saber sobre os fenômenos e coisas do mundo. É capaz, ainda de passar o que supostamente conheceu, aos outros e isso o torna um sujeito dito cognoscente. Ainda que isso do qual da o nome de conhecimento seja sempre parcial, já que na verdade, somos grandes ignorantes sobre o que de fato possa ser a realidade. Isso ocorre por que a realidade por si mesma parece não ser suscetível de ser conhecida, mas somente vivida no tempo presente, através do “estar sendo”. Sendo assim, quanto maior for a capacidade de tolerar e reconhecer a ignorância, tanto maior será a possibilidade de aprender com cada experiência vivida com a realidade, que por mais que possa ser registrada e armazenada na memória como saber adquirido, nunca será como a anterior. O que pode ser conhecido é tão somente aquilo que já passou e se já passou, não pode mais ser chamado de realidade. Portando, seria mais adequado o termo reconhecimento, como um ato de conhecer novamente a cada reencontro do que, simplesmente conhecimento, que pressupõe o já sabido e definitivamente conhecido. De qualquer forma, os seres humanos criam certo código do qual comungam entre si, tentando representar o que supostamente possa ser a realidade.

Sigmund Freud (1856 – 1939) cogita em seus TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE, de 1905, sobre o impulso natural pelo conhecimento ou pela pesquisa, no que chamou de pulsão epistemofílica na criança. Do Grego EPISTEME, “conhecimento”, mais PHILOS, “apreço” ou ainda, “amor”. A tendência inata por querer saber, a disposição conatural da busca pelo conhecimento. Freud propõe que essa tendência de investigação está ligada à esfera sexual e que de maneira alguma tem intuitos teóricos, mas sim práticos. Freud ainda enfatiza que são ativados pelo prenúncio de alguma experiência que possa o colocar inseguro em sua posição. Por exemplo, a chegada de um irmãozinho e o medo de que por conta disso não seja mais amado.

Mais tarde Melanie Klein (1882 — 1960), em sua obra PSICANÁLISE DA CRIANÇA, propõe que o conceito de pulsão epistemofílica, associado ao impulso de ver e tocar estão direcionados as tentativas de pesquisa do corpo materno. “Parece que seu primeiro objetivo é o interior do corpo da mãe que a criança considera, antes de tudo, como um objeto de gratificação oral e depois como acena onde tem lugar o coito dos pais e o lugar onde estão situados os bebês e o pênis do pai.” (Klein, 1932) Tudo que é estranho gera enorme insegurança. Para aplacar o desconforto de se sentir inseguro, deve ser de alguma forma dominado e conhecer é uma forma de tentar dominar. Klein propõe que o bebê quer forçar a entrada no corpo da mãe para se apossar dos seus conteúdos, assim como saber o que se passa ali. “Deste modo, seu desejo de saber o que há no interior daquele corpo se associa de muitas maneiras com desejo de forçar um caminho para o seu interior e um dos desejos reforça e toma o lugar do outro.” (Klein, 1932)

No entanto, por mais que Klein proponha uma conotação impulsiva gerada pela epistemofilia, por outro lado, conforme haja certo amadurecimento emocional, a pulsão epistemofílica passa a ter importância, principalmente em relação ao desenvolvimento intelectual da criança. E essa importância está justamente, na possibilidade de adiar a ação. Isso ocorre através do desviado do impulso da ação motora para atividade mental do conhecimento. “Dessa forma, com o auxílio do instinto epistemofílico, o ato substituto pode, por seu lado, ser substituído por atos preparatórios do pensamento.” (Freud, 1909) Em contrapartida, a repressão precoce do “impulso por saber” parece ser muito danosa. O histórico da vida de pacientes que apresentam características obsessivas parece revelar, quase sempre, um precoce desenvolvimento, seguido por uma repressão muito cedo do impulso de olhar e conhecer. 

Para Wilfred Bion (1897 – 1979), em sua obra APRENDER COM A EXPERIÊNCIA, de 1962, três formas de vinculação: por amor (L), por ódio (H) e por conhecimento (K) e esse terceiro parece ser oriundo da pulsão epistemofílica. Para Bion, o pensamento humano é epistemologicamente anterior ao pensador, sendo que o antes do bebê tornar-se um ser cognoscente, ele tem uma expectativa intata que por sua vez, gera pré-concepções do que conhecerá posteriormente. O bebê nasce com a expectativa inata do seio e seu instinto de auto preservação o fará procurá-lo para que possa sobreviver. Para Bion, o pensar inicia-se a partir da frustração por não encontrar o seio. Isso ocorre se antes disso, tenha sido possível haver uma serie de experiências bem sucedidas com esse seio. O que o capacitará desenvolver tolerância à frustração da ausência e com isso o levando a pensar sobre o seio. 

No andamento da obra de Bion é possível reconhecer três vértices do conhecimento humano, onde parece partir da ciência e da filosofia passando pela estética e pelas artes, expandindo para além, no campo do misticismo e nas formulações religiosas. Numa pesquisa cuidadosa, é possível, perceber certa evolução na ordem desses vértices, onde há uma sucessão que vai do mais saturado na rigorosidade das ciências exatas até o incerto, na possibilidade de abertura para inúmeros sentidos e significados possíveis presente no misticismo. Bion nos deixa uma valiosa contribuição da qual tentarei expandir nesse breve texto.

No âmbito do modelo científico-filosófico, é guardada certa exatidão das palavras, onde o cientista trata o saber de maneira unívoca, admitindo apenas uma interpretação, um único significado; sem abertura para ambiguidades. Porem, mesmo dentro da ciência é possível encontrarmos a abertura para um nível mais evoluído, como é o caso da mecânica quântica a partir dos estudos de Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858- 1947). “Na visão geral da mecânica quântica os objetos de estudo são complementares, partículas/ondas, e devem ser interpretados através de probabilidade, onde o espaço e o tempo das partículas são conduzidos pelo princípio da incerteza.” (Martino, 2015) O princípio da incerteza é uma expansão introduzida por Werner Karl Heisenberg (1901-1976), em seu artigo SOBRE O CONTEÚDO INTUITIVO DA CINEMÁTICA QUÂNTICA E MECÂNICA 1927. “É um importante enunciado da mecânica quântica, que revela o fato de que não podemos determinar com precisão e simultaneamente a posição e o momento de uma partícula.” (Martino, 2018) Mas Heisenberg adverte para o fato de que a “boa física é inadvertidamente prejudicada por uma filosofia ruim”, que possam guiar o físico (Heisenberg, 1989). Sendo assim, a qualidade do estudo científico deve ser definida pela qualidade da filosofia que esteja o orientando.

No âmbito filosófico o pensamento pode se expandir pelo amor ao conhecimento, onde o questionamento sobre os fundamentos do que é realidade proporciona maior abertura nas possibilidades. Arthur Schopenhauer (1788 – 1860), apoia que é função do filósofo esclarecer os fenômenos do mundo e propõe que o rebaixamento da vontade (ou ‘negação da vontade’ assim como se encontra na tradução disponível) é fundamental nessa tarefa. “Ele propõe que, através do rebaixamento da vontade, podemos estar de acordo com a realidade última, justamente a dimensão da intuição.” (Martino, 2015) Isso, já que a vontade, ou ainda o desejo, contamina o possível reconhecimento da realidade.

Podemos aqui arriscar um exemplo da aplicabilidade do modelo científico-filosófico na formulação: “A tolerância, quando ausente do reconhecimento do limite converte-se em permissividade”. Poderíamos configurar essa formulação em termos matemáticos da seguinte maneira: “tolerância – limite = permissividade”. Isso forma uma equação que da mesma maneira, pode ser aplicada a formulação sobre a crueldade gerada na tentativa de introdução da verdade quando ausente de amor. No modelo matemático teríamos: "verdade - amor = crueldade". A saber, seu inverso também é verdade, já que o amor, menos verdade, resulta em paixão. 

É claro que essas formulações sofrem grande empobrecimento na medida em que são reduzidas a formulas frias e suscetíveis de cálculos. Por conta disso, é prudente que estejam associadas à reflexão filosófica e, além disso, sempre disponível à aplicabilidade nas relações afetivas, onde realmente é possível um acordo com a realidade. Por mais que o modelo das ciências exatas seja fundamental, ainda assim, parece ser uma forma que limita o reconhecimento do real, restringido no âmbito material, exclui aquilo que transcende esse campo. Esse modelo busca certa linguagem unificada que possa representar o conhecimento empírico de forma universal. Isso traz benefícios, mas também traz grandes prejuízos. Isso fica mais evidente ainda quando tentamos aplicar na prática clínica da psicanálise. O próprio Bion alerta para esse fato. “As matemáticas disponíveis não fornecem formulações adequadas ao analista.” (Bion, 1970) Não é pelo fato de não estar disponível aos órgãos dos sentidos, que não exista. 

Já no modelo estético-artístico, ocorre um salto onde é possível se utilizar da linguagem poética no âmbito imagético, propiciando certa abertura polissêmica de forma metafórica. Nesse campo, sentimentos e experiências emocionais-afetivas podem ser manifestas, por exemplo, através da uma música, de poesias, da pintura e por ai a fora. Bion propõe, num seminário realizado em Paris, em 1978 e publicado em 1986, que não seria interessante descartar hipóteses imaginativas, justificando que não sejam científicas. Bion compara essa atitude com a de jogar fora sementes de uma planta, com a justificativa de que não se trata de um carvalho ou um lírio. “Isso se aplica a tudo que ocorre no consultório. Mas eu digo que valeria a pena considerá-lo não o seu consultório; e, sim, o seu ateliê. Que espécie de artista é você? Um ceramista? Um pintor? Músico? Escritor?” (Bion, 1986) Para Bion, muitos psicanalistas não são capazes de reconhecer qual tipo de artistas possam ser. Sendo assim, a expressão estetico-artistica parece ser a manifestação mais primitiva das três, já que ao observarmos uma criança é possível perceber que ela canta antes de falar, dança antes de andar e desenha antes de escrever.

Bem, quando é utilizado o vértice místico-religioso ocorre uma expansão onde o sentido não pode ser apreendido pelo aparato sensorial. Portanto, não pode ser conhecido através de qualquer tipo de linguagem, seja ela científica exata, filosófica, poética ou mesmo metafórica. Tão somente representado por elas. Ainda assim, empenhamo-nos em expressar esse reconhecimento através do acordo entre os três vértices. Onde ocorra uma concordância, em que um vértice não tenha a função de disputar com o outro, servir de substituição, ou ainda, de servir de complementação onde o outro não foi suficiente. A proposta da filosofia de Schopenhauer, do rebaixamento da vontade, por exemplo, não é uma ideia original sua, mas é uma antiga proposta presente no cristianismo, nas escrituras védicas, no budismo, assim como de outras formulações religiosas. Nos estudos da mecânica quântica encontramos grande expansão no acordo entre o vértice científico-filosófico e o modelo místico-religioso. Isso é tratado de maneira cuidadosa e expansiva pelo físico quântico indiano contemporâneo Amit Goswami, propõe em sua obra DEUS NÃO ESTÁ MORTO: Evidências Científicas da Existência Divina existe a possibilidade de trazer à baila a ideia de Deus na ciência no evento do colapso da função de onda. 

Bion, talvez tenha sido um dos maiores pensadores dentre os que trouxeram as formulações místico-religiosas para um acordo com os outros vértices do conhecimento humano e o fez através da psicanálise. Bion chamou a atenção para o que denominou “O” da experiência. “Vou usar o símbolo ‘O’ para denotar aquilo que é a realidade última, representada por termos como 'realidade última', verdade absoluta, a divindade, o infinito, a coisa-em-si.” (Bion, 1970) Para Bion, “O” não pode ser conhecido, a não ser de forma fortuita ou imprevisível. “O” é sempre mistério e ausente de contorno, entretanto pode ser apreendido por meio da experiência. Para Bion a formulação de “O” essencial tanto para a ciência quanto e para a religião. “Os místicos religiosos provavelmente foram aqueles que chegaram mais perto de conseguir expressar a experiência da verdade absoluta.” (Bion, 1970).

Um bom exemplo do acordo que pode ocorrer entre o que é do âmbito místicos-religioso e os outros vértices, está na Bíblia Sagrada do cristianismo, onde nos livros de Mateus 22:37, Marcos 12:30 e Lucas 10:27, encontramos a situação em que um dos estudiosos da lei indaga Jesus, que responde: “amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. ” (Mateus 22:37,38,39). No primeiro mandamento, entende-se por “Senhor”, o “O” da experiência, proposto por Bion, ou ainda, no âmbito filosófico, temos a proposta de Friedrich Nietzsche (1844 -1900), no que chama de “Amor Fati” que significa “amor pelo inevitável”. “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – (...) – mas amá-lo...” (Nietzsche, em HUMANO, DEMASIADO HUMANO, 1878). O “O” da experiência de Bion parece estar de acordo com o “fato” de Nietzsche, que deve ser amado, assim como com o “Senhor” do cristianismo, do qual se deve respeitar a vontade. Na frase da oração do Pai Nosso, “Seja feita a vossa vontade”, temos a expressão do acordo com a realidade última. O segundo grande mandamento está diretamente de acordo com a proposta de Freud quanto a amar a si mesmo (libido do ego) e o amor que se possa ter pelo outro (libido objetal), quando escreve que “um verdadeiro amor feliz corresponde à condição primeira na qual a libido objetal e a libido do ego não podem ser distinguidas.” (Freud, 1914). Essa formulação, por si só tem uma conotação estético-artística, pela natural poesia e beleza contidas na própria ideia.

Na realidade o papel dos vértices do conhecimento é o de trazer esperança, apaziguando ansiedades e angústias, geradas naturalmente no caminho do reconhecimento de nossa ínfima posição frente o universo, assim como nossa grande ignorância quanto à realidade. Isso ocorre com o modelo científico-filosófico nos orientando quanto à necessidade de renunciarmos ao desejo do que gostaríamos que a realidade fosse para entrarmos num acordo com o que a realidade de fato é. O vértice estético-artístico enriquecendo de ilustrações e alegorias as mazelas da vida. E o âmbito místico-religioso nos orientado para que as coisas deste mundo terreno-material não nos afetem tanto.


Bion, Wilfred R. (1991) O aprender com a experiência. (Paulo Dias Corrêa, Trad.) Rio de Janeiro: Imago (Originalmente publicado em 1962)

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FREUD, S. TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIADA SEXUALIDADE. In: Obras psicológicascompletas. Rio de Janeiro, Imago, v. 7(1905)

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Goswami, Amit. DEUS NÃO ESTÁ MORTO: Evidências Científicas da Existência Divina, tradução Marcello, Borges. - 1. ed. - São Paulo: Aleph, 2008.

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Um comentário:

Unknown disse...

Querido professor Renato , que belíssima obra , o Sr transitou por vários pensadores, inclusive por suas riquíssimas obras , gratidão por nos nutrir com sua sabedoria 🙏❤️