quinta-feira, 24 de agosto de 2023

O HUMANO E OS GRUPOS - Prof. Renato Dias Martino – Transcrição



Vamos então, pensar na relação do ser humano e dos grupos. Quero fazer um alerta, antes de qualquer coisa. Vamos tirar as crianças e as vovó da sala, porque vamos tocar aqui, em assuntos bem dolorosos, bem desconfortáveis sobre as características desse bicho chamado ser humano. Uma criatura que é cercada de idealizações. Nós idealizamos o ser humano com inúmeras características que na realidade, não são dele, essas características idealizadas, romantizadas e na verdade, quando a gente está falando aqui, do ser humano, nós estamos falando, antes de qualquer coisa, de um animal perigoso, de um animal traiçoeiro. Talvez o mais traiçoeiro, o mais perigoso. A gente está falando aqui, de um animal que, onde ele se instala, ele acaba com todas as outras espécies de animais que não servem as suas conveniências, inclusive com outros seres humanos que também possam não servir as suas conveniências.

AFASTAMENTO DA NATUREZA

Cada criatura desse mundo tem suas características peculiares e o ser humano não é diferente. Mas talvez a característica mais peculiar do ser humano seja a característica de que ele é a criatura que mais se afasta se distancia da sua própria natureza. Ele se perdeu da sua própria natureza. Ele não consegue sequer reconhecer qual é essa sua natureza. Ele não sabe qual é a sua natureza. Dificilmente você pode definir qual é a natureza do humano. E ele, não só se distanciou da sua natureza, mas ele faz distanciar uma série de outras criaturas, seja por força-las a trabalhar para ele, pesado. Um cavalo, um boi, alguma coisa que ele coloca para trabalhar pesado para ele, ou seja como um animal de estimação, que ele pega e humaniza o bichinho e muitas vezes, transforma o bichinho em produto de compra e venda. Então, esta é uma característica marcante do ser humano se distanciar da sua própria natureza e fazer distanciar os outros bichos da sua própria natureza e não só o bicho da própria natureza influenciar nessa natureza para que ela se transforme as suas conveniências.

CRUELDADE HUMANA

Não vamos esquecer também, e quando a gente fala que o ser humano usa as outras criaturas a seu bel prazer, transformando em um produto de compra e venda colocando-as para trabalhar forçosamente, ele também faz isso com outros seres humanos. Nós temos a história da escravidão. E hoje, ainda, se não houver um trabalho muito bem dedicado das autoridades, para fiscalizar, o ser humano continua fazendo deste mesmo jeito. Sempre tentando ter vantagem a partir da vulnerabilidade do outro, de outra espécie, ou da própria espécie. Esse é o ser humano e eu não estou excluindo a nós mesmos disso. Cada um de nós aqui, tem isso aqui dentro de si e se não se submeter a um processo dedicado, vai continuar sendo assim.

EXIGÊNCIA E CONVENIÊNCIA

Inúmeras características que o ser humano manifesta, não são próprias da sua natureza e o tema da conversa hoje é uma delas. Nós estamos aqui, por exemplo, num grupo. Nós estamos num grupo do Skype, nós estamos num grupo aqui, pensando juntos. Não é isso? Mas a vida em grupo não é da natureza do humano. O ser humano não é um animal de grupo. Porque ele manifesta essas características, então? Por dois fatores básicos. Primeiro por ser obrigado e segundo, por conveniência. Porque aquilo lhe é conveniente, não porque faz parte do seu instinto.

PSICOLOGIA DAS MASSA E ANÁLISE DO EGO

Tudo isso aqui pode ser constatado nas suas experiências cotidianas, no seu dia a dia, facilmente. Tudo isso que eu vou dizer aqui. Só ter um pouquinho de coragem para prestar atenção. Mas nós temos também um livro do Freud, em que ele tratou esse assunto. E aí ficam parentes, um tema muito pouco tratado na análise de trabalho, literatura, ou algum psicanalista tratando da ideia de que o ser humano não é um animal de grupo. Pelo contrário, existe até psicanálise em grupo. Eles propõem isso. Mas, como como é que funciona isso, se a psicanálise individual já é um trabalho extremamente difícil? Porque, quando está ali, o analista e o paciente, duas pessoas na realidade, estão pelo menos seis pessoas: o sujeito a mãe e o pai, o analista mãe e o pai. Como é que faz para tratar num grupo, cara? 1921 em PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EGO, Freud traz isso de maneira muito clara. Tem um capítulo lá, que se intitula INSTINTO GREGÁRIO, e aí, ele pega uma obra de um pensador chamado Trotter, um pensador que afirma que o ser humano é um animal gregário. Ele diz que sim, que o ser humano tem sua natureza um instinto agregado. Freud diz, não! Desculpe, meu amigo, mas com todo respeito, não tem! Por que ele não tem? Vamos partir, vamos começar aí, esmiuçar o porquê não teria. Quais os motivos que possam trazer evidências que o ser humano não é um animal de grupo. Se é que precisa! Para aquele que tem um pouquinho de coragem para enxergar.

HUMANO NARCISISTA

Primeiro, a natureza do ser humano é narcisista. O ser humano é um animal narcisista. Ele quer a mãe para ele só. Ele não é capaz de dividir nada com ninguém. Ele aprende a dividir, primeiro, porque ele é obrigado a dividir, segundo, porque ele é conveniente dividir. Aí ele consegue dar um pedacinho do lanche para o amigo. Mas, desculpe, não é da natureza dele. Vamos fazer um experimento. Se você pegar um cabritinho, por exemplo. Um cabritinho é um animal, o cabrito, a cabra é um animal gregário. Se você pegar um cabritinho, um filhotinho de cabrito, que nunca tenha visto um bando de cabrito, sei lá, um rebanho de cabrito. Você o pega de uma outra, de uma outra localidade e coloca ele próximo a um grupo que ele nunca tenha visto antes, ele se enfia no meio do grupo e vira do grupo. Você não vai reconhecer de maneira alguma que aquele animalzinho não era daquele grupo. Ele se enturma perfeitamente, harmonicamente e vai ficar uma beleza ali. Agora, se você pegar uma criança desconhecida, sozinha, longe da sua mãe e do seu pai, e colocar perto de uma de um grupo de pessoas, a última coisa que ela vai fazer é ir no meio do grupo dessas pessoas. Ela vai ter medo dessas pessoas. Ela tem medo do desconhecido. Pega umas criancinhas, assim, quatro ou cinco criancinhas de dois, três anos de idade, coloca numa sala, fecha a porta e vai embora. Deixa ali umas duas, três horas, volta depois para você ver o que aconteceu. Altas mordidas? Altas mordidas! Violência! E não deixe nenhum objeto pontiagudo, porque senão, você vai ter pelo menos um olho furado. Na realidade, o bebê humano tende a negar a existência do outro, da mãe por exemplo. A mãe não existe para ele, para ele a mãe é um pedaço dele. Só aos pouquinhos e depois de muito lutar contra isso, depois de levar para as últimas consequências, essa coisa de negar o outro, ele começa a perceber que a mãe é uma outra pessoa. Mas como a condição de que esta mãe vive para ele e por ele. Para satisfazer os seus desejos, porque se não for assim, também ele dá um jeito de negá-la. O bebê, no princípio da vida, funciona por, ele se liga o outro por identificação, ligação por identificação, ou seja, o outro é uma extensão de mim. Aí você vai dizer assim: “Não, mas aí, o cara quando ele fica adulto, ele é diferente!” Não”. É pior, porque ele passa de simular isso. Ele aprende a dissimular muito bem. Mas não muda muito. O Freud dá um exemplo bacana, no PSICOLOGIA DAS MASSAS EM ANÁLISE DO EGO, ele diz assim ó: “Normalmente o filho mais velho quer é privar o filho mais novo de qualquer regalia que ele possa ter em relação aos pais.” “Por que que ele pode e eu não posso?” O ser humano é um animal competitivo, que disputa. Ele precisa de um trabalho muito dedicado para deixar isso de lado, para dissolver isso, para colocar isso daí no lugar, ali dentro dele, muito bem reservado, muito bem contido. Porque, se ele não tiver isso trabalhado, ele vai continuar sendo assim. O ser humano, quando cresce, quando fica adulto, não muda muito. Não tem muita diferença. Na realidade, quando a gente fala de relações afetivas, o amor verdadeiro é raro. Raríssimo! Sempre foi e hoje em dia é muito mais. A maioria dos relacionamentos tem como fator de ligação, uma grande conveniência por estar juntos, ou porque existe uma culpa enorme. E vou mais longe... No final da vida isso aí piora bastante. Na velhice isso piora muito, porque, quando o sujeito começa a não ter muito mais coisas para oferecer, a maioria das pessoas se afasta. E aí você vai falar que esse animal é de grupo? Que grupo?

ANIMAL GREGÁRIO 

Animal gregário, você vai encontrar na natureza, vários animais gregários, várias aves, caprinos, equinos, suínos, búfalos, elefantes. Independente se o seu animal é forte, pode se defender, ou não, isso não tem nada a ver, não define. Ele pode se ser capaz de se defender dos predadores e ser um animal gregário. Mas o ser humano não é! Uma característica muito clara de um animal agregador é não precisar de um líder. Um animal gregário se agrega, se agrupa sem precisar de um líder. Precisou do líder já denuncia a ausência do instinto gregário. E o ser humano não consegue se agrupar muito tempo se não tiver um líder. Um líder para mostrar o caminho, um líder para ele projetar o seu superego. Sabe isso? Projetar o “ideal de eu”. Projetar aquele “deveria ser”. Projetar a censura. Projetar tudo aquilo que fiscaliza o funcionamento do sujeito, ele projeta no líder e fala: “Ele que vai falar para mim o que que é certo que é errado.” Precisou de um líder, cai por água a ideia do instinto de rebanho. E quando o líder se afasta, o que que acontece? O grupo se desfaz. Agora, é claro! A gente vai aí assim, nos grupos por exemplo, os grupos mais evoluídos, a gente vai falar de um líder subjetivo, abstrato, não é? Uma ideia que possa liderar, mas isso é muito raro. O que o ser humano tenta fazer, quando percebe que um grupo está muito coeso e está perturbando? Mandar prender o líder. Ou não? Manda prender o líder, ou mata o líder. O que aí vai acontecer é aquilo que chamamos de pânico. Quando o líder morre, ou se afasta por muito tempo, acontece o pânico. Vai cada um para um lado, perde o rumo.

ANIMAL DE HORDA 

Mas se o ser humano não é um animal de grupo, o Freud traz uma ideia interessante, uma proposta interessante, ele diz assim: “O ser humano é um animal de horda, assim como os outros grandes primatas.” Somos um grande primata, assim como os chimpanzés, como os gorilas, somos dessa mesma ordem e temos uma configuração grupal parecida com os grandes primatas. Ou seja, a sua estreita esfera familiar. Este é o grupo original do ser humano. A horda a sua família mais estreita. O que é um animal de Horda? É um animal que se mantém dentro da sua estreita esfera familiar, só a primeira esfera familiar. Mas ainda assim, quando um desses exemplares da espécie começa a crescer e se desenvolver, ele já começa a disputar, ali dentro e não consegue se manter ali dentro daquela esfera e já tem que se deslocar para criar uma outra horda.

TOLERÂNCIA A FRUSTRAÇÃO 

Para que ele consiga ter uma vivência dentro de um grupo harmônico, ele precisa de um trabalho muito dedicado para rebaixar a sua urgência de satisfação e ampliar, expandir a sua capacidade de tolerar desconfortos, tolerar frustrações. Ele precisa disso e isso são fatores da função materna e paterna. Quando ele tem um bom convívio dentro da sua horda, quando ele é muito bem cuidado pela mãe, pelo pai dentro da sua horda, ele desenvolve, sim, uma grande tolerância e ele até se adapta aos grupos. Mas que tipo de grupo? Grupos de trabalho. Assim como Bion colocou lá na EXPERIÊNCIA COM GRUPOS. O que é um grupo de trabalho? Isso aqui por exemplo. Existe um motivo muito bem estabelecido do porque estamos juntos. Existe um intuito de estar aqui. Todos nós estamos nesse mesmo intuito e assim que esse intuito completar... cada um para sua horda.

SUSCETIBILIDADE, AUTONOMIA E OS GRUPOS
 
Existem aqueles humanos que estão o tempo todo em grupos e muitas vezes não são grupos de trabalho e muitas vezes até são grupos de trabalho, mas ele está ali por outro motivo que não seja o motivo do trabalho, o tema do trabalho do grupo. O que acontece para esse ser humano está ali? É quando a horda primária não é acolhedora o suficiente, não está sendo saudável o suficiente para mantê-lo ali, ou ainda, quando ele não acredita em si mesmo. Quando ele não confia em si mesmo, ele se enfia nos grupos. Mas assim que ele começa a ter uma certa autonomia de acreditar em si mesmo e confiar em si mesmo, ele inicia um questionamento sobre esses grupos. Começou a acreditar em si mesmo, ele já começa a falar: Hummmm!  Não sei se faz sentido continuar aqui, não... Em psicoterapia, isso é muito comum. O paciente chega, começa o trabalho de psicoterapia, ele começa a se integrar, ele começa a acreditar um pouco mais nele e aí ele começa a questionar os grupos que ele participa. Grupo religioso, grupo de amigos. Amigos!?! Grupo do seu trabalho a instituição profissional que ele frequenta e até sua horda. “Caramba! Acho que eu estou sendo meio abusado, nesse lugar, hein?” Você começa a ser respeitado pelo teu psicoterapeuta, começa a ter uma relação de respeito com ele, de amor sincero e com limites, ou seja, ele começa a ter ali um novo modelo de relacionamento saudável e ele percebe que não é aplicável nos grupos que ele frequenta. Não dá para ser respeitoso, não dá para amar o outro, não tem limite. É sempre uma relação nociva, abusiva, tóxica. Isso quando o paciente não chega justamente porque ele foi machucado no grupo. Ele já chega dizendo: “Meu, estou sendo usado dentro da minha casa, estou sendo abusado no trabalho, estou sendo abusado, lá na igreja.” Porque grupos humanos, na sua maioria, são nocivos. Inveja, disputa desigual, abuso. Um querendo derrubar o outro. Raríssimo grupo humano que não tem isso. Grupos humanos são usualmente insalubres. O sujeito, quando ele está acreditando em si mesmo, o sujeito quando ele está confiando em si mesmo, quando ele está integrado na sua personalidade, ele tem muito pouco interesse nos grupos. Ele investe muito pouca energia em grupos, ele investe a sua energia na sua família, na sua horda, na sua estreita esfera familiar. A energia dele vai para ali. Frequenta os grupos de trabalho. Claro que frequenta! Mas ele frequenta esses grupos como grupo de trabalho. E mantem relações, vínculos com as pessoas, não com grupos. Ele tem vínculo saudáveis com pessoas.

GRUPO E ILUSÃO

Os grupos se mantêm por ilusão. O que mantém um grupo à ilusão. quando a verdade aparece o grupo se desfaz o Freud é muito claro quanto a isso e o Bion, lá em 1970, ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO, traz uma ideia muito bacana, que é a relação do místico e do grupo. Místico é um sujeito que tem três características incluindo do próprio místico, do gênio, do messias e do místico. O gênio é o que traz ideias novas, o messias é aquele que traz uma ideia promissora e o místico é aquele que traz a ideia verdadeira. Trouxe essas três ideias, pronto! O grupo já começa a te atacar, porque essas ideias atacam o grupo. Toda a ideia genial ameaça o grupo. Todo gênio foi condenado pelo grupo. Todo messias foi condenado pelo grupo e todo místico é atacado, é tido como louco, porque o grupo não está preparado para isso. E aí, nas palavras do Bion: “O místico destrói o grupo e o grupo destrói o místico”.

GRUPO E FALSIDADE 

A vida em grupo de força dissimular. Você tem que ser falso, no grupo. Para se manter harmonicamente num grupo humano, você precisa dissimular. Se você for muito verdadeiro dentro do grupo humano, logo, meu amigo, você é expelido. O grupo de rejeita. Não tem lugar dentro do grupo para o verdadeiro eu. E isso adoece o sujeito, enrijece o “falso eu”, o “falso eu” vai ficando grosso, espesso. Sufocando o “verdadeiro eu”. Isso é insalubre, porque você precisa se defender dentro do grupo, já que você está dentro de um ambiente onde tem vários animais como esse que eu falei lá no começo da fala. Perigosos, traiçoeiros, sagazes, narcisistas. Que precisam de um trabalho muito dedicado, maternas e paternas para aprenderem a amar, porque não é característica inata do ser humano capacidade de amar. Ele precisa aprender a amar e não só aprender a amar, mas para ele aprender a reconhecer limites. Porque sem limite, o amor não se sustenta. Então, a função materna é o que ensina amar e a função paterna ensina reconhecer o limite, que já existe. Ele precisa disso. Ele precisa de um trabalho dedicado. E aí, quando a gente pensa numa sociedade onde os pais deixam as crianças muito cedo, passar a maior parte do tempo com desconhecidos, terceirizando cuidado. Como é que fica isso gente?

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