terça-feira, 1 de agosto de 2023

PSICANÁLISE E RELIGIÃO - Prof. Renato Dias Martino


Quando a gente fala das formulações religiosas, ou da espiritualidade como um elemento que possa corroborar para o sucesso do trabalho psicanalítico, esta proposta precisa ser espontânea, precisa partir de dentro do sujeito. O Sigmund Freud (1856 - 1939) não tinha isso, infelizmente. O Freud não conseguiu ter isso, porque ele foi inundado de preconceitos a respeito da religiosidade. Ele era judeu e ele sofreu demais com isso. Ele padeceu a vida inteira, desde pequenininho até a sua morte. Ele foi forçado a sair de Viena, onde ele viveu quase que a vida toda e ir para Inglaterra fugido, porque Adolf Hitler (1889 –  1945) tinha tomado a Áustria e ele, como judeu teve que sair de lá fugido, depois de ver morrer parentes próximos, familiares. Então não tinha como Freud ter uma boa concepção do que era religiosidade, porque também existia ali, a questão da imposição e religião sendo elementos que coincidiam. No entanto, não é nesse âmbito que nós estamos é buscando aqui, esclarecer ou refletir. Nós estamos falando de algo que parte de dentro. O Freud. lá no MAL-ESTAR DA CIVILIZAÇÕES (1930), fala sobre não conseguir encontrar nele um “sentimento oceânico”. O que que esse “sentimento oceânico”? É de fazer parte do todo. Ele não conseguia sentir isso, mas é disso que nós estamos falando, de conseguir fazer parte do tudo, de ser capaz de se integrar ao todo, de se religar ao todo. Então, religião é religar. Infelizmente o Freud não teve essa chance. Não discordo do Freud quando ele coloca que o sujeito busca a Deus, o Pai Eterno, numa tentativa de reparação da relação conflituosa que teve com o seu pai físico, dentro da perspectiva, em relação familiar. No entanto, Deus está configurado numa dimensão muito mais ampla do que isso. Nós estamos falando aqui, do Deus que criou o homem, não do Deus que o homem criou. Tem uma publicação das cartas que o Freud trocava com Oskar Pfister (1873 - 1956), que era um pastor protestante e ali o próprio Pfister fala para ele que, tendo a posição dele, tão avesso, tão aversivo as formulações religiosas, ou a religião, ele apresentava características de um cristão, muito mais do que vários ditos, supostos cristãos. Ainda assim, o Freud era muito mais cristão sendo quem era, do que muitos pastores e ditos, supostos cristãos aí, que se colocam nesta posição de superioridade, dentro das formulações religiosas. A própria psicanálise é uma configuração de compaixão, de acolhimento e de uma série de elementos que estão dentro da posição do cristão e não só do cristão, mas também se correlaciona aí, com o budismo, com a cultura védica. Athur Schopenhauer (1788 - 1860), trouxe essa possibilidade de integração. Schopenhauer fala bastante da cultura védica, fala bastante do budismo. E não só, mas assim, se a gente for levar em consideração aí a mitologia grega já que a gente tá falando de deuses. Então, o Freud se utiliza disso o tempo inteiro. Dessas formulações. Ou seja, é impossível desagregar qualquer que seja a área do pensamento humano, das formulações religiosas. É uma grande estupidez, o sujeito que ainda tenta fazer essa coisa de separar as formulações religiosas da ciência, ou da tomada de consciência da realidade. Nós temos aí, cientistas famosos, que contribuíram demais para a humanidade e que são extremamente devotos, se não por Jesus Cristo, por Alá. Se não por Alá por Krishna, pelo budismo, ou qualquer outra coisa dentro dessa perspectiva da espiritualidade, ou ainda, das formulações religiosas. Existe uma outra configuração das formulações religiosas, independe de uma crença, independe de uma fé, que vai para além disso. É a formulação religiosa, ou a utilização da religião, como uma forma de carinho. Sabe quando a tua avó vai se despedir de você e pega na tua mão e diz assim: “Fica com Deus, filho”, “Vai com Deus”? Sabe o que é isso? Você pode ser ateu, meu amigo, mas isso, ainda assim, é uma forma genuína de amor puro. É uma forma de ternura, a forma mais bela do amor, sendo colocada sendo manifestada através de uma formulação religiosa. Isso não tem preço, gente! Sendo você ateu, ou não. De que outra forma a sua avó poderia ser tão amorosa com você, que não fosse com um “Vai com Deus”, “Que Deus te proteja”, “Que Deus te abençoe”. A contemplação é um elemento de psicanálise, para aquele que pratica psicanálise do acolhimento. o significado da palavra contemplar traz a ideia de com = junto e templo = local sagrado. Juntos no local sagrado. Então, o paciente e o analista estão numa posição de contemplação. Estão juntos num ambiente sagrado, num ambiente não local. Isso é muito interessante. Que aí a gente já busca ali, um conceito da física quântica. Do Goswami, do Amit Goswami da “realidade não local”, da “consciência não local”. O ambiente não local, porque nós não estamos aqui dentro do mesmo local, mas nós estamos dentro do mesmo ambiente emocional-afetivo sagrado por sua vez. Então, estamos contemplando. O preparo emocional-afetivo é a base para um bom relacionamento com as formulações religiosas. Um sujeito perturbado emocionalmente, vai voltar todas as configurações religiosas contra si mesmo e consequentemente, contra o outro também. Ele vai usar as formulações religiosas para se culpar, para se condenar, para se punir, para uma configuração nociva. Então, a psicanálise e a religiosidade estão juntas nesta perspectiva. O sujeito precisa cuidar do seu funcionamento emocional-afetivo para que ele possa estar integrado dentro das formulações religiosas, ou da espiritualidade. Então, a religiosidade cuida de uma parte, a psicanálise cuida da outra que, ao mesmo tempo, são interdependentes. Ao meu ver, a maior função da religião, ou da espiritualidade é propiciar para que o sujeito, que a gente possa se auto responsabilizar. Ele precisa se responsabilizar por ele e pelos seus vínculos. E quando eu falo aqui de vínculos, eu estou falando de vínculos com as pessoas que estão em volta dele e também com o mundo, com a natureza, com o todo. Assumir a sua responsabilidade. A verdadeira religião, a verdadeira posição espiritual é aquela, a verdadeira espiritualidade é aquela que traz para o sujeito a responsabilidade e um sujeito que é responsável por si e pelos seus vínculos é um sujeito que não permite culpa. Onde existe a capacidade de responsabilização, a culpa não resiste. A culpa só domina o ambiente onde não existe sujeitos que são capazes de ser responsabilizar. A responsabilidade é o que neutraliza, é o que dissolve a culpa. O sujeito intolerante, acaba sendo vulnerável aos charlatões religiosos. Porque o charlatanismo religioso é aquele que traz respostas, quando na realidade, Deus é mistério. Ser capaz de estar dentro das formulações religiosas, ser capaz de estar de acordo com as formulações religiosas, requer tolerância à frustração, requer ser capaz de tolerar a dúvida, tolerar o mistério, tolerar aquilo que não pode ser entendido, não pode ser compreendido. Deus está dentro da perspectiva do incognoscível! Não pode ser conhecido e aí o sujeito que não tem essa tolerância naquilo que Wilfred Ruprecht Bion (1897 - 1979), chamou de “capacidade negativa”... O que acontece? Ele é um alvo muito fácil dos charlatões do charlatanismo religioso, onde o dirigente traz respostas, ao invés de prepará-lo para dúvida. Também dentro da psicanálise, o papel do psicanalista não é dar respostas, mas é propiciar um ambiente fecundo de tolerar a dúvida, de ser capaz de tolerar o desconforto da Incerteza. Assim como propõe a própria física quântica, dentro da formulação do Werner Heisenberg (1901 — 1976), quando propõe o “princípio da incerteza”. Todo o pensamento mais nobre da humanidade, está de acordo com a dúvida, está de acordo com a incerteza. O que faz pensar não são as respostas, são as dúvidas. O Bion usa essa formulação do Maurice Blanchot (1907 - 2003): “A resposta é a desgraça da pergunta”. Você está respondido, não tem mais o que falar, não tem mais o que você pensar, está tudo resolvido e esta é a questão do diagnóstico hoje em dia. O sujeito recebe um diagnóstico psiquiátrico, ele se conforma com aquilo, se entope de medicamentos e acabou. Ele está fadado a aquilo, ele está confortavelmente dentro daquela perspectiva nociva.


Nenhum comentário: