quarta-feira, 2 de novembro de 2011

INCAPACIDADE DE SENTIR A FALTA

Então, passamos a existir no mundo a partir de certa condição básica onde nos é possível nos responsabilizar por ele. Sendo capazes de nos responsabilizar por nos mesmos, estamos então qualificados a nos responsabilizar por aquilo que está para além de nós, no mundo externo. E é dessa forma que vamos nos tornado reais, ou pertencentes daquilo que chamamos de realidade.

 

Quando se adquire o status de ser real, inclui-se também a condição de falível, passível de falhas, ou ainda, responsável por faltas. Então percebemos que esse processo que conduz a capacitação da responsabilização e então a realização, está intimamente ligado a experiência da falta. Dentro de certa perspectiva saudável do funcionamento mental, somos conduzidos a identificar as faltas e nos responsabilizar por isso. É essa a função mental que fundamenta a possibilidade de nos tornarmos reais.

Concomitantemente com a tomada de consciência da falta, o “eu” sofre a experiência da integração. Passa e ser mais completo e adquire maior autonomia sobre suas escolhas. Isso por reconhecer-se a si mesmo, também em suas limitações e se propondo, a partir daí, a expansão das habilidades e de suas possibilidades.


Para aquele que se aventurou, mesmo que brevemente nos estudos do desenvolvimento do pensar, não é novidade alguma que o bebê aprende a pensar justamente na ocasião da ausência da mãe. Isso se dá quando o instinto de nutrição na forma primitiva da pulsão, o incomoda e por alguma razão a mãe não pode estar prontamente à disposição. Iniciam-se então tentativas imaginativas ou alucinatórias quanto a essa experiência. O bebê tenta imaginar o que poderia acontecer para que aquele desconforto (gerado pela fome) do qual sua capacidade primitiva ainda não permite compreensão, seja extinto.

Dentro desse ensaio, quando o bebê pode ser capaz de recordar experiências suficientemente boas com a mãe (real), para que seja possível sustentar essa falta, abre-se então a possibilidade daquilo que chamaremos aqui de pensamento simbólico. A falta é assim, sustentada por um símbolo, que servirá de amparo até que o objeto desejado (a mãe real) retorne. A partir de certa experiência que confirma a mãe na realidade, passa-se a tolerar com maior capacidade os períodos de sua ausência.
Logo, a função simbólica é o que qualifica o grau de maturidade emocional, pois é a capacidade de tolerar a falta da mãe da qual se intuiu real. Isso não qualifica apenas para enfrentar a ausência materna na primeira infância, mas serve como um modelo de simbolização que evoluirá na função de tolerar todas as faltas que permearão a vida daquele que busca se tornar real.

Para o psicanalista Wilfred Bion (1897 – 1979), “A incapacidade de tolerar frustração poderá obstruir o desenvolvimento dos pensamentos e da capacidade de pensar” (Bion [1952], 1994, p. 131). Bion apoia que o bebê começa a pensar quando se torna capaz de toleras a falta da mãe.

Wilfred Bion (1897 – 1979)

“se a capacidade de tolerar a frustração for suficiente, o não-seio se transforma em pensamento, e desenvolve-se um aparelho para “pensá-lo” (...) A capacidade de tolerar a frustração, portanto, possibilita que a psique desenvolva o pensamento como um meio através do qual se torna mais tolerável a frustração que for tolerada” (Bion [1952], 1994, p.129).


No entanto, na incapacidade de simbolizar, o sujeito fica preso à confirmação compulsiva da realidade. Isso ocorre por não cofiar na experiência que pode ter com a realidade. Vê-se então, impelido a se certificar repetidamente se ainda existe. Mesmo sendo adulto o sujeito revela uma forma de se vincular com o mundo, com a configuração primitiva de um bebê, que se desespera quando precisa da mãe e não pode confirmar sua presença. Ou ainda pode, em casos mais severos, de maneira psicótica, desistir definitivamente desta mesma realidade. Através de recursos narcisistas, desvaloriza a realidade e se aprisiona dentro de si mesmo.

Talvez por esse motivo o ser humano venha se dedicando tanto a desenvolver recursos para se manter a maior parte do tempo acreditando na ilusão de que nada pode ser perdido realmente. Acreditando nisso, muito pouco ou quase nada se dedica a desenvolver a capacidade de suportar a situação de perda, ou de tolerar faltas.

Desenvolve métodos avançadas para tentar dar conta da criação de meios para que não se sinta a carência de ninguém e não sinta a falta de nada. Através de tecnologias aperfeiçoadas, cria aparelhos que o mantém interligado constantemente com o outro, para que não sinta que está distante, ou esqueça que perdeu.
Na medicina, cria técnicas de cirurgias plásticas cada vez mais eficazes para afastar a verdade de que seu corpo está perdendo a juventude e decaindo com a idade.
Por meio de medicamentos psiquiátricos também simula uma sanidade para afastar a realidade de seu desequilíbrio mental. Isso quando não despreza experiências fundamentais e num funcionamento esquizofrênico desvaloriza aquilo que na realidade nunca pode ter. Desdenha justamente por nunca ter vivido. Vínculos fundamentais como os com a mãe, ou com o pai, perdem o valor. Na realidade essas figuras fundamentais nunca estiveram ali, perder o que (ou quem), então?


Esforçando-se então no intuito de uma tarefa danosa ao funcionamento saudável da mente, ele busca soluções para construir uma pseudo-realidade onde não se perde mais nada e também não se sente mais falta de ninguém.





Bion,W. R. [1952]. Uma teoria sobre o pensar. In: Estudos psicanalíticos revisados – Second thoughts. Rio de Janeiro: Imago, 1994.


Martino, R. D. Para Além da Clínica. São Paulo: Inteligencia 3, 2011.
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Fone: 17- 991910375

4 comentários:

Ricardo Costa disse...

Ótimo texto !!

Unknown disse...

Parabéns Prof Renato, ao ler seus textos aumenta minha paixão pela psicanálise.

Unknown disse...

Excelente texto!
Parabéns!

Victor P. Faria disse...

Muito bom, professor!