O estudo da psicanálise, assim
como a pesquisa das mais expansivas áreas do pensamento humano nos ensina que a
busca por reconhecer a si mesmo é uma tarefa de alargamento da mente que se
realiza impreterivelmente pela ligação com o outro. Através do encontro com o
outro revelamos características de nossa personalidade e somente por meio do
estabelecimento de um relacionamento com este outro é que passa a ser possível
perceber partes do eu que ficariam latentes sem essa experiência afetiva.
"Necessitamos da opinião do outro quanto ao que somos. Isso existe
naturalmente como necessidade de reconhecimento. Então, o ego carece disso,
pois é daí que se nutre a autoestima." (Martino, em O amor e a expansão do
pensar, 2013).
Assim, as relações afetivas que procedam no reconhecimento trazem
o fundamento da sustentação e desenvolvimento do funcionamento mental. A
proposta psicoterapêutica tem justamente esse intuito; o de dispor através do
psicoterapeuta, certo vínculo de boa qualidade que possa proporcionar um
autorreconhecimento para o paciente que se dedica.
A busca pelo alargamento no desempenho do pensar está diretamente
subordinada às relações afetivas. Por conta disso a experiência de se
relacionar afetivamente não está implicada simplesmente em uma questão de
satisfação onde se enamora de alguém por atender aos desejos sexuais ou suprir
carências superficiais e medos da solidão, mas falamos antes de tudo de uma
necessidade fundamental para o bom funcionamento mental. O estabelecimento de
boas alianças em vínculos afetivos saudáveis é o que nutre o eu de amor próprio
e assim como nos ensina Freud (1856 - 1939) em seu importante texto SOBRE O
NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO, "...nas relações amorosas, o fato de não ser amado reduz os sentimentos de auto-estima, enquanto que o de ser amado os aumenta."
Há um certo tempo atrás
escrevi algumas linhas, entituladas AGORA A REGRA É A DO FICAR, que trata dos modelos de relacionamento adotados pelo ser
humano em geral, que diferente dos outros animais, demuda e compõe novas formas
a cada tempo. Na ocasião que me propus ensaiar sobre o assunto, foi possível
enumerar alguns modelos de aproximação e relacionamento que foram se
transformando conforme cada época, tendo como base a sociedade ocidental, da
qual tenho maior acesso. Parti então, do modelo característico de uma sociedade onde as aproximações e relacionamentos aconteciam por conta de
conveniências familiares, onde os pais decidiam com quem os filhos iriam se
casar. Uma forma utilizada no passado onde os casais eram previamente
arranjados pelos pais conforme conveniência familiar, tendo como referencial os
bens das partes assim como tradições mantidas pelas linhagens. Esse modelo
guardava características de imposição; o que não fez mais que gerar uma revolta
culminando numa dissolução da forma autoritária de decisão quanto ao futuro
afetivo dos filhos. Assim, essa forma de vinculação aos poucos foi se
dissolvendo e dando lugar a outra modalidade de relacionamento que permitia ao
sujeito o livre-arbítrio na escolha e que recebe então o nome de namoro.
"Descritivamente
se trata de certo modelo de relacionamento que inclui um período de
reconhecimento e avaliação entre as partes do casal, até que se optasse por
estarem juntos (ou não) em um compromisso “legal” ou formalizado." (Martino, 2011)
Esse modelo de aproximação e
relacionamento denominado namoro é o que funda a família pós-moderna. No
entanto conforme o passar do tempo este modelo também foi gradualmente
substituído por um novo padrão de aproximação e ligação agora num formato mais
breve, e que seria denominado ‘ficar’. Nesse formato de aproximação a ligação
não duraria mais que alguns minutos e por sorte uma hora, ou coisa assim. O
grande risco desse tipo de aproximação - penso que a palavra ligação, aqui
começa a ficar inadequada, por conta da curta duração - é o fato de ser
realizado tendo muito pouco compromisso e responsabilização, muitas vezes
associado ao consumo de álcool e outras drogas, o que promoveria dificuldade na
avaliação da realidade dos fatos e desta forma estimulando a superficialidade
no contato. Com isso a geração de gravidezes indesejadas e a proliferação de
doenças sexualmente transmissíveis passa a ser de uma frequência assustadora.
"O beijo que seria símbolo do amor pós-moderno,
agora passa a ser o troféu na superficialidade do encontro denominado ‘ficar’.
Troféu desligado de noções como qualidade, mas fica condicionado segundo a
quantidade de sujeitos beijados numa só noite de balada."
(Martino, 2011)
Ainda no plano da transformação
dos modelos de ligação e relacionamento, o formato do 'ficar' em muito pouco
tempo foi migrando para um modelo mais superficial ainda, que denominou-se
'pegar'. Ora, se no 'ficar' ainda existia, mesmo que breve, algum tempo de
permanência, no modelo do 'pegar' a ação do 'largar' seria de maior facilidade
ainda, promovendo assim maior superficialidade.
Aqui pretendo retomar o tema, tentando atualizar a
maneira como o ser humano em geral vem funcionando dentro do âmbito afetivo.
Claro, que ao escrever este tipo de ensaio esse autor conserva consciência de
que existe uma cota da sociedade que busca outras formas de relacionamento que
podem contar com maior capacidade de compromisso e responsabilização, que não
estão incluídas nessa forma generalista de funcionar.
Pois bem, hoje
assistimos (ou participamos) de uma nova sena no âmbito das ligações e dos
relacionamentos. Não é novidade alguma o fato de que atualmente a grande
maioria das pessoas não consegue viver sem um aparelho celular que esteja à mão
e que a comunicação entre grande parte das pessoas se resume em breves palavras
digitadas ou gravadas em pequenos trechos de áudio enviados à qualquer hora em
qualquer lugar onde possa alcançar a rede de sinal dos provedores de telefonia
móvel.
Sendo assim, as
aproximações e os relacionamentos parecem seguir a mesma tendência.
Me parece
que grande parte das aproximações hoje acontecem através das redes sociais
virtuais. Redes de relacionamento como Facebook, ou ainda recursos aplicáveis
que se restringem aos aparelhos celulares como Whatsapp, ou ainda o Tinder,
um aplicativo de encontros onde o usuário pode conhecer novas pessoas que
possuem interesses em comum. Esse último busca as informações como localidade e
preferências de um perfil e relaciona com dados de outro. Ora, me parece muito
interessante poder desfrutar de recursos
tecnológicos como estes e pelo menos a princípio, não consigo identificar nem
um dano provável nesse meio de procura por um par afetivo. No entanto, o que
ocorre é que aquilo que poderia
configurar-se no início de um relacionamento saudável, se pudesse evoluir, em
grande parte dos casos não passa de troca de mensagens eletrônicas.
De tal
modo, o benefício da facilidade se converte em fracasso na expansão do vínculo. A impossibilidade de se
encontrar de maneira presencial pode criar certo desgaste num vínculo que mal
surgiu. Com inúmeras experiências do mal-entendido frequentemente ocorrentes
nessa forma limitada de comunicação, por não contar com impressões fundamentais
de afetos que só podem ser possíveis de forma presencial o vínculo que se
inicia dificilmente resiste por muito tempo.
Na realidade temos sempre,
duas forças conflituosas disputando lugar dentro do funcionamento mental. Freud
nos ensina com muita propriedade sobre as duas tendências que trabalham nos
processos psíquicos e regem nossa interação com o mundo externo onde se
encontra o outro e assim interferindo diretamente nos modelos de vínculo
afetivo.
"Depois
de muito hesitar e vacilar, decidimos presumir a existência de apenas dois
instintos básicos, Eros e o instinto destrutivo. (O contraste entre os
instintos de autopreservação e a preservação da espécie, assim como o contraste
entre o amor do ego e o amor objetal, incidem dentro de Eros.) O objetivo do
primeiro desses instintos básicos é estabelecer unidades cada vez maiores e
assim preservá-las – em resumo, unir; o objetivo do segundo, pelo contrário, é
desfazer conexões e, assim, destruir coisas. No caso do instinto destrutivo,
podemos supor que seu objetivo final é levar o que é vivo a um estado
inorgânico. Por essa razão, chamá-lo também de instinto de morte." (Freud em ESBOÇO DE PSICANÁLISE, 1940 [1938])
Dessa maneira, quando a
pulsão de morte rege nosso funcionamento somos forçados a nos desligarmos do
mundo externo só nos relacionando com o outro de maneira narcisista, ou seja
como se fosse aquilo que satisfaça o nosso desejo. A tolerância, quando
acontece, é mínima dentro dessa forma de funcionar. Tenho percebido de maneira
muito clara que vivemos numa sociedade contemporânea que tende a se
configurar-se num formato narcisista e sendo assim os encontros e ligações
afetivas se mantém cada vez mais enquanto for conveniente para as partes. A
pulsão de vida da qual Freud ilustra com o Deus do amor, Eros vem sendo
extremamente frágil, se desfazendo com muita facilidade e atuando de forma cada
vez mais breve. Assim, dando lugar para o domínio de Thanatos, o Deus da morte
ilustração da pulsão de destruição que funciona como fator de desligamento.
Isso quer dizer que na medida em que ocorram conflitos ou mesmo se o outro se
revele sendo ele mesmo e não mais aquilo que o sujeito deseja que ele fosse
(uma extensão de seu desejo) as relações se desfazem. "A experiência clínica familiarizou-nos com as pessoas que se
comportam de uma maneira notável, como se estivessem enamoradas de si mesmas, e
essa perversão recebeu o nome de narcisismo." (Freud, em DOIS VERBETES
DE ENCICLOPÉDIA, 1923 [1922]).
Se no modelo do 'ficar'
ou mesmo do 'pegar' ainda existia um contato físico, mesmo que breve, nesse
novo modelo não chega a existir sequer a mínima presença física. No
entanto, se por acaso inicia-se uma relação presencial ainda assim essa
experiência deve enfrentar outro obstáculo. O uso da tecnologia através de
aparelhos como os celulares, smartphones e similares, que se mostrava limitador
quando não passava de contato virtual perdura impedindo que os casais possam
desenvolver a relação. O abuso da tecnologia parece perdurar mesmo depois que a
relação presencial possa ter sido estabelecida, evitando que o vínculo se
aprofunde. Como que hipnotizados pelo pequeno aparato eletrônico, os casais
parecem estarem presentes apenas fisicamente, onde cada um está muito mais
inteirado com o que se passa nas redes sociais ou nos conteúdos da internet, do
que com a pessoa que está do seu lado.
Então se concordamos
que é somente através do encontro com o outro que podemos revelar e reconhecer
características fundamentais de nossa própria personalidade, nesse modelo de
relacionamento grande partes do eu permanecerão ocultas do próprio eu. O eu se
vê de nutrido na auto-estima, que sem reconhecimento tem comprometido o desenvolvimento
do funcionamento mental. Numa tentativa de fugir do encontro emocional/afetivo
com o outro que impreterivelmente revelaria características do eu. Numa
experiência mórbida evita-se o outro e fugindo do outro o sujeito se perde dele
mesmo.
Infelizmente as consequências
desse tema não se restringem simplesmente ao âmbito dos relacionamentos
afetivos entre casais, mas se estendem nas próximas gerações que se originam
desses tipos de relacionamento. O que será das crianças que nascem desses
"encontros" narcisistas?
FREUD, S. [1914]. Sobre o narcisismo:
uma introdução. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas.
1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
_________ 1923 [1922]. DOIS VERBETES DE
ENCICLOPÉDIA. Idem.
________ 1940 [1938]. ESBOÇO DE
PSICANÁLISE. Idem.
Martino, R. D. O amor e a expansão do
pensar : das perspectivas dos vínculos no desenvolvimento da capacidade
reflexiva - 1. ed. -- São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora,
2013.
4 comentários:
Muito pertinente e atual o assunto.
Sugiro ampliar o tema tratando também da questão do relacionamento virtual como extensão do relacionamento pessoal, como no caso de casais que vivem um relacionamento à distância, ou até mesmo como uma forma de estar mais em contato com o outro, participando do dia a dia.
Acredito que muitas vezes essa conexão em excesso pode atrapalhar o relacionamento, pois além da possibilidade de um "sufocar" o outro, há muita possibilidade de interpretações errôneas do que é dito, ou até a possibilidade de ignorar alguém apenas não respondendo suas mensagens ou demorando pra responder, gerando mais afastamento que aproximação.
Muito pertinente e atual o assunto.
Sugiro ampliar o tema tratando também da questão do relacionamento virtual como extensão do relacionamento pessoal, como no caso de casais que vivem um relacionamento à distância, ou até mesmo como uma forma de estar mais em contato com o outro, participando do dia a dia.
Acredito que muitas vezes essa conexão em excesso pode atrapalhar o relacionamento, pois além da possibilidade de um "sufocar" o outro, há muita possibilidade de interpretações errôneas do que é dito, ou até a possibilidade de ignorar alguém apenas não respondendo suas mensagens ou demorando pra responder, gerando mais afastamento que aproximação.
Muito agradecido, querida Érica Rodrigues da Costa!
Essas relações praticadas ou vividas através das tecnologias muito em breve mudarão, penso que deve cansar afinal, WhatsSaap não dá abraço, não tem afeto e não se compromete. A dinâmica do afeto só existe com a presença do outro. Excelente redação!
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