terça-feira, 18 de outubro de 2011

DA CULPA À RESPONSABILIZAÇÃO

Questionar sobre as maneiras como nos vinculamos às pessoas e às coisas do mundo não é muito comum na prática da vida cotidiana. O conceito de amor, assim como o de ódio, é onde isso parece sofrer maior privação do pensar. Talvez por gerar um aborrecimento indesejado, que muitas vezes acaba por converter-se em crise. De qualquer forma, tomo a atitude de escrever algumas linhas sobre alguns modelos de vínculo, tendo como princípio o fato de que as crises, quando acolhidas dentro de certo ambiente saudável, são justamente o que permite a expansão do pensamento. 
Quantas vezes nos propomos a refletir sobre nossos vínculos? De que forma estamos ligados ao outro e porque insistimos em continuar dessa forma? Por que não conseguimos nos vincular ao outro, ou ainda, por que nos desligamos tão facilmente?
Quando inundados pela culpa criamos uma forma especial de vínculo. Sentindo-nos culpados, somos defensivamente obrigados a nos refugiar nos domínios do nosso mundo interno. O sentimento da culpa força-nos a nos desfocarmos o olhar que seria dirigido ao mundo externo e sugere a focar-nos a atenções em aspectos internos. Isso com o intuito de restabelecer o bom funcionamento da mente. Toda energia mental é agora concentrada no mundo interior, onde está a culpa. 
Assim como no funcionamento primitivo do bebê em sua primeira infância, onde pouco reconhece do mundo, além dele mesmo, também naquele que carrega uma culpa, a energia psíquica está dirigida para o eu. A partir da experiência da culpa, o ego fica desvalorizado, enfraquecido, desnutrido. Independente da realidade dos fatos, a culpa faz do 'eu' um criminoso, e dessa forma toda e qualquer energia da mente deve se colocar em função e aos cuidados desse ego desnutrido. Logo, o sujeito acometido pela culpa deve reunir características egoístas.
Não é absurdo propor que cada experiência de perda, ou mesmo de ameaça de perda, implica em certa cota de sentimentos de culpa, no questionamento do quanto se conseguiu realmente cuidar do que se foi. Assim, essa forma da mente trabalhar se instala, ocupando o funcionamento mental, muitas vezes, levando a autorrecriminação, e até autopunição. Quanto maior a dependência para com o objeto que é ameaçado pela perda, ou mesmo, o objeto que foi perdido, tanto maior a culpa implicada na experiência. 
Dentro dessa perspectiva, a relação com o mundo externo, nos vínculos com o outro, só pode ser sustentada com o intuito de afastar, ou aplacar o desconforto ocasionado pela culpa, ou ainda, em função do medo da perda. Nada pode ser construído, nada se edifica, pois toda energia centraliza-se no intuito de restabelecer a harmonia do aparelho mental. O objeto externo, nessa situação, já não pode mais ser chamado assim, isso por conta da dependência dele para o funcionamento mental do sujeito. O eu e o outro se confundem, não podendo ser separados. Dessa forma objeto interno e objeto externo se fundem. 
Pelo menos a priori, a culpa tem sua origem na fantasia. Isso quer dizer que não depende da confirmação da realidade para se sustentar. É oriunda de experiências ocorridas no passado que o hoje não pode atestar.
Sigmund Freud
(1856 - 1939)
Assim como coloca Sigmund Freud (1856 - 1939), o administrador da culpa é um agente crítico componente da estrutura mental do qual denominou superego, ou ideal de eu. Esse influente de censura, gera um "deveria ser" e pega emprestado da racionalidade fatos isolados e condena o 'eu' como se essas partes da realidade fossem o todo.

A partir da construção dessa conjectura quanto à culpa, podemos dizer então, que enquanto a mente está ocupada em cuidar da culpa, se vê impedida de responsabilizar-se pela realidade. 
A responsabilização, diferente da culpa, é um movimento do ego estruturado e nutrido. Um ego sadável qualifica o sujeito, aquele que se reconhece, aprendeu a respitar a si mesmo, se responsabiliza e assim, se expande em direção ao mundo, em nome da realização. Contudo, aquele que está culpado se encontra impedido  de realizar. 
A realização parte justamente da capacidade de responsabilizar-se por tudo aquilo que foi gerado a partir do encontro com o que está para além do eu (o outro). Essa responsabilização deve contar com o espaço mental que ocupará essa ideia. Uma mente entulhada de culpa não pode conter responsabilização. O sujeito responsável está ocupado em realizar, enquanto que o culpado está preocupado com suas culpas. A pré-ocupação é sempre perigosa e um sinal claro da presença da culpa. Aquele que, intoxicado pela culpa, se pré-ocupa com o futuro (ou mesmo com o passado), está impedido de ocupar-se do presente, único lugar do tempo que pode guardar a realidade.
A responsabilidade é um conceito que está na ordem da ética, enquanto a moral se utiliza da culpa. A verdadeira responsabilidade (assim como outras atitudes éticas) deve ser incorporada quando criança, e isso se dá através da identificação no vínculo com os pais, nunca imposta em um padrão de educação pré-estabelecido. 
Já tivemos a chance de refletir sobre os conceitos de respeito e reconhecimento, e assim parece claro que, quando se é reconhecido pelo outro, abre-se então a possibilidade do auto reconhecimento, e a partir daí então se torna capaz de reconhecer o outro. Tendo como hipótese que o amor é uma capacidade desenvolvida a partir da experiência do reconhecimento, então podemos propor que aquele que não se encontra capaz de amar pode ver na culpa um modo de manter-se ligado ao outro.
A desvalorização ocorrente no ego culpado o faz incapaz de se responsabilizar por si mesmo. Isso pode levá-lo a esconder dele próprio as piores características, justamente por se ver incapaz de se responsabilizar por isso. Contudo, estas mesmas características não deixarão de existir, permanecerão ali, atuando no funcionamento mental, mas agora resguardadas pela culpa, aparecem como se fossem responsabilidade do outro.




Capítulo do livro: O amor e a expansão do pensar : das perspectivas dos vínculos no desenvolvimento da capacidade reflexiva / Renato Dias Martino. - 1. ed. - São José do Rio Preto, SP : Vitrine Literária Editora, 2013.










5 comentários:

Reimei disse...

Assusta tanta genialidade textual
Não suportaria ficar um segundo perto do professor Renato..
Sinto quase uma opressão ,da onipotente sabedoria que ele transmite..
Sinto que não e algo natural..

Reimei disse...

A alma humana e tão complexa que soment eum ser supremo tem o poder de revel-a-la.

Leila Viana disse...

Olá Renato, você tem um intelecto esplendido!!!
Toda este texto sobre a culpa me lembrou a posição do alcoólatra, a culpa, a volta a sua mundo interno, a colocação a parte da realidade, a não responsabilização.Estou errada?
Muito bom o texto. Acho que consegui ler algo sobre culpa bem esclarecedor e tão abrangente.
Obrigada por elucidar este assunto.
Grande bj.Leila

Anônimo disse...

Querido Renato,

Seu blog está lindo, tanto no designer neutro, como a distribuição dos conteúdos...
Agora os conteúdos explanados dentro de um discurso universitário, está explendido...
Muito obrigada pelo banquete intelectual e pela questão humana muito presentificada em ti.
Beijos
Andréa Ramos

Eliane disse...

O sentimento de culpa me acompanha com frequência... Esse texto parece que está me definindo. Sempre me pergunto se quero realmente estar com alguém, ou se o faço apenas para aplacar o sentimento de que sou incapaz de ser interessante. Credo!!!!!!!!!!!