quarta-feira, 29 de maio de 2024

ACOLHIMENTO E NEUTRALIDADE - Prof. Renato Dias Martino



Uma pessoa, nas redes sociais, fez um comentário assim, embaixo de uma postagem: “Ai que fofo, esse negócio de psicanálise do acolhimento, como é fofo isso!” Não é fofo. Não vamos romantizar o acolhimento. É uma outra questão. A questão da psicanálise do acolhimento vem do desenvolvimento da ideia de que é tão somente pelo acolhimento que pode haver algum desenvolvimento, alguma possibilidade de reparação no âmbito emocional ou afetivo. Não existe outra forma de ocorrer esse tipo de experiência reparadora que não seja pelo acolhimento. Qualquer outra tentativa de técnica que seja aplicada dentro da clínica, vai ser equivocada e malsucedida. Na melhor das hipóteses, vai ser inócua, vai ser inútil, não vai surtir qualquer efeito e na pior das hipóteses, vai criar uma defesa muito maior do que aquela que está sendo manifestada ali. Então, o acolhimento é uma questão fundamental dentro da clínica psicanalítica. A possibilidade de se abrir um espaço, de se propiciar um espaço emocional-afetivo livre de críticas, livre de bajulação, livre de tentativa de convencimento, livre de tentativa de sedução, de julgamento. Isso é fundamental. Não é romantizar a psicanálise. A questão não é que a psicanálise do acolhimento é uma psicanálise fofa, é que na realidade, é a única forma de se conseguir alguma expansão é pelo acolhimento. Todas as outras formas são muito belas dentro da perspectiva racional, ou intelectual, mas não funciona.

TEORIA OU TOLERÂNCIA 

Acolher diz respeito a rebaixar o resgate dos dados da memória, diz respeito a rebaixar a expectativa, o desejo em relação ao paciente, diz respeito a tolerar a sua ignorância frente à experiência que está acontecendo ali, frente ao material que o paciente traz. Acolher diz respeito a prestar atenção, sinceramente. Então, isso tudo é muito mais difícil do que sentar na frente de um livro, ou sentar numa cadeira de uma faculdade, ou de um curso de formação de psicanálise e se entupir de teoria.

AMOR E SINCERIDADE

A questão é amor e sinceridade. O acolhimento tem esses dois elementos imperiosos na sua configuração. Se doar ao paciente, mas se doar dentro do possível, dentro da sinceridade daquilo que é possível se doar. Não para além daquilo que você consegue, mas se doar dentro do seu limite. Amor e limite, dentro da sua sinceridade e isso é extremamente difícil de praticar. Ou o sujeito retém a sua doação o seu amor e aí não é amor, ou então ele passa da conta e vai para além daquilo que é sincero, gerando depois um desdobramento nocivo.

AMOR E DOR

Amar é doloroso. A rima mais adequada para o amor é dor. O sujeito não é capaz de amar, se ele não aprendeu a tolerar a dor.

NEUTRALIDADE

Muito se fala da neutralidade do psicanalista. Neutralidade é uma conversa fiada. A neutralidade foi uma colocação teórica que o Freud colocou nas obras dele e que na verdade ele nunca praticou. O Freud era um cara muito afetivo. O Freud era um cara que tinha uma intimidade muito grande com os pacientes dele. A neutralidade, na verdade, é muito conveniente para o sujeito que não é capaz de amar sinceramente. A neutralidade é muito conveniente para o analista que não é capaz de ser carinhoso. E quando eu falo carinhoso, eu não estou falando meloso. O carinho tem limite para ser verdadeiro. É um carinho respeitoso, onde existe ali, uma fronteira muito clara do que transcende e vira desrespeito.

NEUTRALIDADE E O ANALISTA REAL 

Um analista que está exercendo a neutralidade não está sendo ele mesmo. Ele não está sendo real e não sendo real ele não vai conseguir acessar a realidade do seu paciente. Rebaixar a memória, rebaixar a expectativa e ser capaz de tolerar a sua ignorância é justamente a possibilidade de estar sendo real. Porque a tua realidade está no aqui e agora, não está naquilo que você lembra não está naquilo que você gostaria que fosse e muito menos naquilo que você sabe, mas está naquilo que você está sendo. Então, a neutralidade é muito conveniente para o sujeito que não está conseguindo ser real e está dissimulando. Estando dissimulando, ele vai acessar a dissimulação do seu paciente e não a verdade. Quando você está sendo verdadeiro, você convida o outro a ser verdadeiro, quando você está sendo falso, você convida a falsidade do outro.

PSICANÁLISE DOS VÍNCULOS 

Uma das maiores contribuições do Bion dentro da psicanálise foi justamente essa possibilidade de deslocar a psicanálise do sujeito para o vínculo. Dentro da psicanálise pós-bionana, por assim dizer a gente passou a olhar para o vínculo que se estabelece entre o analista e o paciente. Porque, muitas vezes aquilo que ele manifesta no vínculo com as outras pessoas, está contaminado do despreparo, ou da capacidade do outro de manter um vínculo saudável e dentro da análise ele consegue estabelecer um vínculo saudável. Onde passa a ser possível uma boa avaliação do funcionamento dele, onde ele não está sendo ameaçado por julgamento, onde ele não está sendo criticado, onde ele não está sendo bajulado, elogiado, onde não estão tentando convencê-lo de nada. E aí, ele pode ser real ali a psicanálise do vínculo. Traz essa possibilidade enorme de um avanço, numa real avaliação do funcionamento do sujeito. Então, muitas vezes o sujeito chega dizendo assim: “Ah! Eu sou uma pessoa muito autoritária, muito impulsiva.” Aí você diz assim: “Puxa vida! Você me perdoa, mas eu não consigo ver isso em você!” E aí, você começa a perceber que ela, até pode ser isso, nos vínculos que ela vive lá fora, mas ali dentro, onde ela está podendo ser real, ela não é. Ou seja, ela está se defendendo lá fora e muitas vezes ela nem tem essas características, mas o outro diz para ela que ela tem essas características como uma conveniência muito grande de controlá-la, de alguma forma, ou de obter um benefício dela.


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