sexta-feira, 31 de maio de 2024

OS JOGOS ELETRÔNICOS NUM OLHAR PSICANALÍTICO


 No final da fase anal, dentro do seu desenvolvimento, a criança inicia uma nova etapa da vida emocional da qual Sigmund Freud chamou de fase fálica, em que as brincadeiras que até então pareciam não ter um objetivo muito claro e brotavam sem regras particulares, passa a dar lugar aos jogos. Esse novo padrão de atividade vem com uma meta específica a se cumprir, um desafio particular a se enfrentar. A criança passa a se interessar por essa modalidade de atividades que pode ser individual, em dupla, ou ainda, num formato coletivo. O jogo é como que uma brincadeira com normas particulares e que inclui um objetivo claro. O ímpeto natural da disputa e da competitividade, próprio dessa etapa do desenvolvimento, encontra nos jogos uma maneira de sublimação, ou mesmo de elaboração. Nessa etapa do desenvolvimento, dentro da perspectiva edípica, surge um ímpeto de competir com o pai, a posse da mãe. Numa configuração saudável, isso ocorre tanto no menino, quanto na menina. No entanto, a menina irá viver mais um desdobramento quando reafirmar a identificação com a mãe e passar a disputar com ela a posse do pai.


Videogames


Na década de 1950, criou-se os videogames acoplados aos aparelhos de televisão, que hoje são difundidos em grande escala nos computadores, no modelo portátil, ou ainda, em aparelhos celulares. Hoje, o público dos jogos eletrônicos não se restringe às crianças, mas se amplia em adolescentes, adultos e muitas vezes idosos. Com temáticas que vão, desde divertidos desenhos animados, até formas realísticas propiciadas pela avançada tecnologia atual. Simulando campeonatos de futebol, corridas automobilísticas, até violentos embates. Essa modalidade violenta de jogos eletrônicos, atualmente tem gerado amiúde, polemicas quanto a hipótese de estimular, ou ainda, provocar comportamentos violentos naquele que tem o hábito de jogar. Contudo, na realidade o que ocorre é justamente o inverso. O videogame é um recurso lúdico para que isso possa não vir acontecer na vida real. Além disso, traz inúmeras possibilidades de aprendizado no nível cognitivo, já que desafia o jogador a refinar sua capacidade de atenção e concentração. 


Animal Violento


O ser humano é naturalmente um animal violento e carece de muito cuidado, atenção e nutrição afetiva para que aprenda a conter sua brutalidade que é inata, dissolver sua natureza violenta, para que possa vir a aprender a amar. Não é necessário ser um psicanalista, ou um estudioso do funcionamento mental para se reconhecer as frequentes atrocidades provocadas pela crueldade humana ao longo da história da humanidade, mesmo antes que houvesse jogos eletrônicos violentos. Os jogos eletrônicos podem ser um recurso muito interessante na função de sublimação e na possibilidade de elaboração da agressividade e com isso pode haver considerável mitigação na hostilidade. Ora, aquele que pode brincar com algo antes de realizá-lo, tem menor chance de vir a fazer isso. Impulsos de rivalidade, a tendencia de competição, assim como a agressividade e a hostilidade, quando não encontram uma maneira de serem bem elaboradas na infância, tendem a fixarem-se e se estenderem para a vida adulta o que dificultará a capacidade de amar. Quanto maiores forem as oportunidades de brincar com uma fantasia, antes que isso tome proporção da realidade, mais bem elaborada será quando vir a se realizar. 


Lúdico


O ensaio lúdico é uma chance de se brincar com certa experiência sem que isso precise ser manifestado na realidade. A agressividade que existe na criança, encontra no jogo violento uma representação lúdica. Por maior que seja a dificuldade do ser humano de se responsabilizar pelo que brota dentro de si mesmo, ainda assim, não são os jogos violentos que geram a hostilidade do humano, mas a violência do ser humano que o fez criar jogos violentos. Faz nos jogos para não o fazer na realidade. Um dos grandes avanços dentro da psicanálise propostos por Melanie Klein foi a ludoterapia. Um modelo de aplicabilidade psicoterapêutica em crianças pelo brincar.  Melanie Klein propunha um ambiente em que a criança pudesse aprender a brincar, aprender, a se iludir, já que, muitas vezes, ela teria sido arremessada em direção à realidade de forma tão bruta, que por medo disso, viera a desaprender, ou ainda, em alguns casos, nunca havia aprendido brincar. No lar onde esteja havendo o cultivo de um ambiente emocional e afetivo saudável, por mais violentos que possam ser os jogos, isso não terá a propriedade de influenciar de maneira nociva. Por outro lado, quando o lar está desestruturado e configurado de maneira tóxica, inúmeros elementos podem agir de maneira danosa, até mesmo um simples jogo.


Vício Eletrônico


Os jogos eletrônicos podem se tornar nocivos em uma configuração peculiar. Quando são usados na tentativa de suprir a ausência dos fatores das funções maternas e paternas. Quando os pais não dispõem de tempo para dar atenção a criança e então, tentam entretê-la com aparelhos eletrônicos. Nessa situação a criança, sozinha e carente de atenção e de afeto, tende a se apegar de forma patológica ao aparelho. De maneira desmedida e sem limites a criança adere ao funcionamento do aparelho e passa a dispensar qualquer outra atividade, inclusive a atenção dos pais, o que antes tanto ansiava. Todo interesse de uma criança se concentra em seus pais e ela insistirá em receber a atenção deles até as últimas consequências.  No entanto, quando, definitivamente reconhecer que não consegue isso, se apegará a algum outro recurso. Então, os jogos eletrônicos podem ser de grande poder hipnótico e passar a prendê-la sobremaneira.  


Intervenção clínica 


Quando tratamos da aplicabilidade psicoterapêutica dentro da psicanálise, tentativas de propor métodos preestabelecidos ou receitas de como fazer, são sempre inadequadas. Isso ocorre já que o desenvolvimento das sessões deve ocorrer espontaneamente, onde o psicoterapeuta deve estar aberto a acolher o conteúdo que o paciente venha a trazer. A saber, quando proponho aqui acolhimento, isso está subordinado à um ambiente que esteja livre de críticas, julgamentos, condenações, bajulações, seduções, assim como tentativas de convencimento. Sendo assim, na demanda do abuso no uso de jogos eletrônicos não seria diferente, visto que se instalou um funcionamento compulsivo, o que precisa ser reparado. A reparação dessa forma de funcionar só pode ser feita através da atenção dedicada do psicoterapeuta, dentro de um vínculo saudável que possa vir a se formar. Me parece que a atitude de se entrar na experiência, junto daquele que joga compulsivamente seria uma maneira de reconhecer o universo onde o sujeito ficou prisioneiro. Dessa maneira e a partir de um vínculo de confiança, passa a existir uma chance de se estabelecer uma cumplicidade temporária, onde aos poucos passa a ser possível criar juntos, recursos para sair desse estado.


Joãozinho precisava muito de companhia para brincar, necessitava de atenção. 

Mas, ninguém tinha tempo para brincar, lhe deram um aparelho celular, então.

Apegou-se a isso para o tempo passar, foi isso o que fez o pequeno João.

Certo dia, por “viciado em celular” teve a sua condenação.

Decidiram, então, arrancar o aparelho celular de sua mão.







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