segunda-feira, 26 de agosto de 2024

SAÚDE NO VÍNCULO - Prof. Renato Dias Martino




DESEJO

Vamos pensar então, no desejo. O que eu estou chamando de desejo aqui? A expectativa. esperar que o paciente faça isso ou faça aquilo. Esperar que o horário acabe, desejar que alguma coisa aconteça. Quando você deseja que alguma coisa aconteça, você obstrui a coisa real de acontecer. Então, o paciente diz assim: “Olha, vou largar do meu marido. eu não aguento mais aquele cara. ele é um ‘mala’. Ele não tem me tratado mal. Isso aquilo, aquilo outro...” E aí, você registra na memória: “Ela vai se separar do marido”. E aí, na próxima sessão ela chega e fala: “Olha, nós reatamos, conseguimos entrar num acordo, vou dar mais uma chance para ele”. E aí, você falar: “Mas como isso! Eu estava aqui esperando que você iria largado do seu marido. Eu estava esperando aqui que você iria se separar. Você como é que você muda de ideia”. A minha expectativa não conta. É a vida dele. Ele precisa se capacitar para administrar a sua própria vida e o teu papel é de ajudá-lo nesta tarefa de capacitação de cuidar da própria vida.

SABER

E aí, a gente vai para o presente, ou para o saber. Rebaixar a ânsia de saber. Porque, quando a gente fala assim: rebaixe a ânsia de saber, renuncia ao conhecimento, na realidade, nós estamos falando assim ó: renuncia a tendência de tentar encaixar aquilo que está acontecendo naquilo que você supostamente já sabe. O saber é registrar o passado para tentar se prevenir para o futuro. Viver a experiência com o meu paciente sem tentar encaixá-lo naquilo que eu supostamente já sei, eu estou trazendo saúde pro vínculo.

CONCÓRDIA 

Toda a verdade só vai aparecer dentro do um ambiente de concórdia, de concordância. COM + CORDES COM é junto e CORDES é coração. Se não estivermos juntos de coração, não importa quem está com a razão. Vai haver sempre o embate. Agora, se você está junto de coração, importa menos ainda a razão, porque a razão é simplesmente um representante da materialidade das coisas, do saber, do conhecimento, daquilo que não passa de um olhar superficial da realidade. Para que possa emergir a verdade, nós precisamos cultivar um ambiente de concórdia, E aí, se a gente estiver falando então, do setting terapêutico, isso é fundamental. Se o sujeito não estiver em paz, se o sujeito não estiver tranquilo, ele não consegue, de maneira alguma, ser verdadeiro. Ele vai estar se defendendo o tempo todo. E aí, que psicanálise é essa? Psicanálise das defesas? Não! Ele precisa estar em paz, ele precisa estar bem, ele precisa estar seguro e se você estiver investigando o seu paciente, ele vai estar se defendendo das suas Investigações.

ACORDO COM A REALIDADE

O meu compromisso, em primeiro momento é com a realidade. O meu acordo é com a realidade. Antes do paciente me procurar, eu já havia travado um acordo com a realidade. Vou continuar tendo esse acordo com a realidade e cada interpretação, cada palavra, cada atitude que eu tiver, vai ser de acordo com a realidade. Eu vou ser um porta-voz da realidade. A realidade me mostra que o paciente tem o direito de se manter iludido. Ele tem o direito.

ATENÇÃO FLUTUANTE 

Nós temos inúmeras formas de aplicabilidade da psicanálise. Nós estamos falando aqui, de uma psicanálise que é uma extensão dos ensinamentos do Freud e o Freud foi claro quando ele disse assim: “Precisamos exercer a atenção livremente flutuante”. Se você está exercendo a atenção flutuante, você não pode, de maneira alguma estar preso em dados armazenados na memória. Agora, existem outras escolas lacanianas, sei lá o que “anas” aí, que usam das formulações que convém a eles usarem. Dentro daquilo que foi o ensinamento freudiano, resgatar a memória é extremamente nocivo para que você possa exercer aquilo que ele orientou enquanto atenção livremente flutuante.

RECORDAR

Quantas relações, quantos vínculos você tem na sua vida que você tem a chance de ser uma pessoa nova a cada encontro? Todo mundo já espera alguma coisa de você. Todo mundo já se lembra aquilo que você sem perceber prometeu que você vai ser. Todo mundo espera que você seja aquilo que eles lembram sobre você e isso obstrui a sua possibilidade de ser uma pessoa nova. O vínculo terapêutico precisa estar livre do resgate dos dados da memória. Eu estou falando de uma forma bem superficial, mas se a gente se aprofundar, a gente vai chegar ao ponto de que, aquilo que a gente se lembra não é verdade, não é realidade, é uma um registro extremamente limitado da realidade, um registro extremamente limitado daquilo que realmente aconteceu. Porque eu não dou conta de registrar de uma maneira abrangente, ou de maneira total. Eu estou subordinado ao estado de humor que eu esteja naquele momento. Esse registro vai estar contaminado com esse estado e depois, quando eu resgatar, eu já tenho outra contaminação, porque eu vou selecionar aquilo que me convém me lembrar. Então, a memória é extremamente nociva para um vínculo saudável. Diferente da recordação. RE-COR-DAR É Recordar! RE, que é de novo, COR, que é coração e DAR, doar novamente ao coração.

MEMÓRIA IRRIGADA DE AMOR

Não me lembrar das coisas que você me disse vai te dar a chance de você ser real. O meu amor por você não pode estar subordinado às coisas que eu me lembro de você. Talvez esteja subordinado às recordações. Mas existe uma diferença gritante entre memória e recordação. Para que a memória seja recordação, ela precisa estar sendo irrigada de amor. O amor faz com que essa memória ganhe vida e aí ela vai vir espontaneamente. Eu não vou buscá-la. O amor diz respeito à atenção, prestar atenção e quando eu presto atenção é porque eu estou exercendo a capacidade de amar. Quando eu digo: “eu já sei”, eu estou obstruindo a minha capacidade de amar.

SEM MEMÓRIA

Quando o paciente, por exemplo, vem e relata alguma coisa e diz assim: “Ah! Então, aconteceu aquela coisa que eu te falei. Você lembra?” Eu vou dizer: “me conta de novo” Quando ele me conta de novo, ele vai me contar de outra maneira, de outra forma, observando outras características daquilo que antes ele não tinha observado. Porque ele já não é mais o mesmo e hoje ele tem uma capacidade muito maior, uma maturidade muito maior para reconhecer aquilo que ele acreditava que era de uma forma. Se eu digo para ele assim: “sei sim, eu lembro muito bem o que você falou” Pronto! Limitei, obstruir a possibilidade de repensar aquilo e muitas vezes, é importante que eu até explique pro paciente de uma maneira muito clara. Olha: “eu não tenho memória” Eu brinco com meus pacientes assim: “eu tenho Alzheimer, eu esqueço de tudo que você me diz. Vou te dar a chance de me dizer tudo de novo.

MEMÓRIA, DESEJO E COMPREENSÃO

Porque isso coincide com uma orientação do Bion, que diz que um psicanalista precisa renunciar da memória dos dados armazenados na memória, logo estamos falando do passado. Dados armazenados na memória são nocivos na prática clínica. Por que são nocivos na prática clínica? Porque o paciente precisa ter a chance de ser uma pessoa nova a cada encontro e cada vez que o analista resgata dados da memória ele está reclamando que o paciente seja aquilo que ele foi. E nós estamos trabalhando não com aquilo que ele é ou aquilo que ele foi, mas nós estamos trabalhando com aquilo que ele está sendo. Nós estamos trabalhando com um movimento, com a transformação. Quando eu rebaixo o resgate dos dados armazenados na memória, eu estou trazendo saúde ao vínculo. Eu estou trazendo a chance de sermos novas pessoas. Não só o paciente, não só o analista, mas que o vínculo possa se renovar. O futuro diz respeito à expectativa, ao desejo. Quanto mais eu for capaz de rebaixar aquilo que eu espero em relação ao meu paciente, aquilo que eu espero em relação a mim mesmo e aquilo que eu espero em relação ao vínculo, tanto mais esse vínculo vai poder se manifestar de maneira verdadeira. Porque a expectativa daquilo que deveria ser, vai trazer a tendência a ser aquilo que não se está sendo. E o presente está acontecendo no aqui e agora, logo eu não posso saber sobre o presente. Eu só posso saber de alguma coisa que já passou. O conhecimento está subordinado ao registro da memória. Eu só sei de alguma coisa que já passou. Eu não sei aquilo que está acontecendo agora e nem aquilo que virá. Quando eu digo que eu conheço alguma coisa, eu digo que eu conheço baseado naquilo que eu registrei na minha memória, logo isso que eu estou dizendo denuncia a limitação do conhecimento. Porque o conhecimento diz respeito àquilo que já passou e se já passou é limitado, não é realidade.


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