domingo, 29 de setembro de 2024

DESAPEGO E VONTADE - Prof. Renato Dias Martino


DESAPEGO


Toda a configuração da prática do desapego, e quando eu falo prática do desapego aqui, nós estamos falando diretamente do intuito da própria psicanálise, porque a psicanálise propõe essa ideia de se desapegar. São inúmeras formas de se dizer isso, uma delas por exemplo está proposta lá em 1917 no LUTO E MELANCOLIA, que é ser capaz de viver o processo do luto e aqui nós estamos chamando de desapego. Então, a proposta do desapego coincide com a proposta psicanalítica. Esta proposta tem um desafio que é a vontade. A vontade que, na medida em que não é satisfeita no seu tempo, na medida que não é cumprida, suprida no seu tempo adequado, vai se desdobrar em desejo. Um sujeito que está saudável, que está funcionando de maneira saudável é aquele que é capaz de se desapegar, é aquele que é capaz de renunciar dos seus desejos e capaz de adiar suas vontades. Isso se configura num fluxo do desenvolvimento emocional e afetivo.


VONTADE


Quando a gente fala de vontade, a gente está falando daquilo que ao mesmo tempo que é a manifestação da vida, também é aquilo que pode obstruir o próprio fluxo da vida. Muitas vezes, a manifestação da vontade atenta contra a própria vida do sujeito. Ele, muitas vezes, está com tanta vontade que ele, por si só, pode se colocar em uma cilada. Um Bom exemplo disso é quando a molecadinha, lá no sítio, arma uma arapuca para pegar passarinho. A arapuca está cheia de milho para que o passarinho possa se alimentar e é justamente a vontade de viver que leva o passarinho buscar o milho. E esta vontade de viver faz com que ele caia na arapuca. Então, a vontade de viver é também aquilo que leva sujeito, muitas vezes, para a própria morte.


DESEJO


Essa ideia do desejo, ela é extremamente polêmica, principalmente dentro de outras escolas aí, por exemplo, dentro da escola lacaniana. Vou ser bem sincero, tenho um conhecimento extremamente limitado das propostas do Lacan, mas me parece que ele trata, os lacanianos tratam da ideia de desejo diferente da forma como nós tratamos aqui. Nós tratamos aqui o desejo como algo que não é necessário, mas que ainda assim, o sujeito quer. Então, quanto mais o sujeito for capaz de se desapegar, renunciar desse desejo, mais ele vai estar de acordo com a realidade, que está configurada naquilo que é necessário.

NECESSÁRIO


A vontade é genuinamente do sujeito. O sujeito tem vontade de alguma coisa e isso diz respeito à sua necessidade básica. O desejo diz respeito à interferência, ou a contaminação do que o outro quer. Então, vontade é básica, a vontade se manifesta através do corpo, por conta de necessidades básicas. E aí, o Schopenhauer nos orienta muito bem, lá no MUNDO COMO VONTADE DE REPRESENTAÇÃO. O desejo já é algo que se elegeu um objeto substitutivo para tentar suprir algo que não foi adequadamente suprido no nível da vontade.


REPRIMIDO


Existe um instinto e o instinto está ali, assim como o Freud nos orientou, está ali na barreira entre o somático e o psíquico, entre o somático e o psíquico, entre a carne e a mente. De início é uma manifestação orgânica que nós vamos chamar de instinto. Então, o instinto está ali naquela barreira, o instinto se manifesta pelo corpo, mas já não é mais do corpo. O corpo é o soma, o corpo são manifestações orgânicas. O instinto já transcende o orgânico. Primeiro o instinto. O instinto está ali, na barreira do somático e do psíquico. Este instinto vai se manifestar através da pulsão. A pulsão é algo que acontece por conta da demanda instintiva, ou instintual, melhor dizendo. Esta pulsão vai gerar o que a gente vai chamar de impulso. Então, o impulso é a ação da pulsão. Este impulso vai ser a ação em direção a um possível objeto que possa vir suprir a demanda do instinto. Quando essa satisfação não acontece o impulso retorna. E aí, a gente vai chamar de reprimido. Por quê? Porque não houve a satisfação, não houve o suprimento da demanda do instinto. Retorna este impulso. E aí, a gente vai chamar de impulso reprimido. Este impulso reprimido agora não vai mais se satisfazer com o objeto original, ele vai eleger um outro objeto para satisfazê-lo. Este outro objeto é um objeto de desejo, não mais um objeto de vontade, que seria a demanda do instinto.


NASCE UM DESEJO


Para que se desenvolva o desejo é necessário ter havido a repressão. Reprimiu-se a vontade e agora a vontade já não se satisfaz mais com o objeto original, mas agora, precisa de algo a mais, para ser supostamente satisfeito. Porque não vai ser satisfeito. Desejo nunca se satisfaz, o que se satisfaz é a vontade. O sujeito que deseja, ele quer sempre mais. A vontade se satisfaz até que haja novamente a sua demanda.


AMBIENTE 


Quando o Winnicott propõe a mãe ambiente, ele está propondo a mãe, não como outro, mas como o ambiente. Ela vai dar conta da demanda das necessidades. Ela vai dar conta da demanda da vontade e se ela der conta disso, tanto menor vai ser a geração de desejos. Quando ela não é capaz de suprir essas necessidades, quando ela não está sendo suficientemente boa, ele começa a desenvolver desejos, porque a vontade não foi satisfeita. Então ele começa a vincular aquela vontade à relação com o outro que já não é mais ambiente, mas é realmente um outro. Então ele precisa fazer alguma coisa para que esse outro venha suprir isso. E aí, já não é mais vontade é desejo.


PULSÃO DE VIDA 


Quando Freud propõe pulsão de vida, ele está ali, se baseando na ideia de vontade do Schopenhauer, falando sobre a manifestação do instinto, daquilo que é mais primitivo no ser humano. Então, não tem a ver com desejo. Quando isso não é satisfeito, começa a se desenvolver o desejo que já não é mais básico, mas que já tem uma contaminação de algo a mais do que a satisfação da necessidade básica.


VORACIDADE


A voracidade é uma expressão do desejo. Quando a criança começa desenvolver voracidade é porque ela não foi satisfeita, ou não foi suprida no tempo adequado, aí ela começa a ter vontade para além da conta. E aí, se torna desejo. O Winnicott vai falar assim, que a criança alucina o seio e a mãe encaixa o seio real na alucinação do bebê. Quando essa alucinação que o bebê tem do seio não é suprida no seu tempo, esta alucinação cresce. A vontade não foi satisfeita e começa a crescer, então aquela vontade que gerou uma alucinação x, agora é x elevada a tanto. Aquele seio que vai se encaixar nessa alucinação já não vai mais suprir, porque essa alucinação já virou um desejo.


SUJEITO DESEJANTE


Então a gente vai partir da ideia do objeto. O que é um objeto? Ser um objeto é ser alguma coisa que alguém deseja. Objeto é algo que é desejado. O bebê precisa ser um objeto desejado. Ele precisa ser alguma coisa que o outro deseja. Um objeto precisa ser desejado para que ele possa se mover. Um vaso é um objeto. Se alguém não desejar esse vaso, ele vai ficar esquecido lá. Então, eu preciso desejar o vaso para que o vaso saia do lugar. Eu desejo o vaso, eu pego o vaso e levo pra minha casa. Quando o sujeito vai se desenvolvendo emocionalmente, ele deixa o lugar de objeto desejado para sujeito desejante ele passa a desejar. A maioria das escolas psicanalíticas acabam a história aí. O sujeito é um sujeito desejante, está ótimo! Não! Não está ótimo. Agora ele precisa se qualificar para ser capaz de renunciar do seu desejo. Aí sim, ele está aberto. Aí sim, ele desobstrui o caminho do acordo com a realidade. Porque a realidade existe independente do seu desejo e se você continuar sendo um sujeito desejante, você não vai conseguir entrar num acordo com a realidade, que existe independente do seu desejo.


RENÚNCIA


No senso comum a gente vincula a ideia de liberdade à possibilidade de satisfazer os desejos, mas na realidade, a verdadeira liberdade é ser capaz de renunciar dos desejos, de não satisfazer os desejos. Ser capaz de tolerar que o seu desejo não vai ser satisfeito. Para quê? Para que você possa investir a sua libido na necessidade básica, na vontade, naquilo que realmente vai te trazer enriquecimento para o fluxo da sua vida. Então, a liberdade não está em satisfazer desejos, mas está em ser capaz de investir naquilo que é necessário.


ESCOLHA


Se a gente estiver falando de vontade, não tem escolha, o caminho é um só. Você pode até adiar, mas não tem como escolher você não tem como escolher se alimentar ou não, mas você pode adiar a alimentação. O desejo tem escolha. Você pode escolher ou não. Eu posso escolher por exemplo até não suprir a minha vontade e tentar realizar o meu desejo. Vou ter um prejuízo com isso, mas o livre arbítrio está ali. Para que eu possa, talvez reconhecer que, quando eu estou satisfazendo o meu desejo, eu tenho prejuízo da minha necessidade básica. E aí, eu aprendo com a experiência e percebo que o caminho é um só não são dois.


QUERER


A semântica da palavra vontade, ela diz respeito a querer. Querer está ligado tanto à vontade, quanto ao desejo. Quem deseja quer alguma coisa e quem tem vontade também quer alguma coisa. Querer é a base, mas esse querer é de desejar ou de ter vontade. Se for de ter vontade é necessidade básica, se for de desejar é alguma coisa que não é necessário.


TOLERAR


A vontade, ou o desejo geram ansiedade. Ansiedade é ânsia, busca. Quando eu sou frustrado nisso que eu fui buscar, eu sinto angústia. Angústia diz respeito à frustração. Quando eu estou falando de adiamento da vontade, ou de renúncia do desejo, nós estamos falando de ser capaz de tolerar a frustração, de ser capaz de tolerar a angústia gerada por não conseguir aquilo que se buscava. Eu preciso me tornar capaz de renunciar, ou adiar. Renunciar se for desejo e adiar se for vontade. Se eu conseguir isso, eu vou conter essa ansiedade e aí, eu inclusive, posso até direcionar para alguma outra coisa mais adequada, ou suprir essa vontade num momento mais adequado.


TROFÉU 


O sujeito, quando está com sobrepeso, quando ele está mais gordo do que o saudável, isso quer dizer que está havendo uma obstrução na vontade de viver. Quando você está pleno na sua vontade de viver, o seu corpo está adequado ao fluxo da sua vida. Então, emagrecer dentro da vontade de viver é se adequar ao peso que vai te trazer a possibilidade do fluxo da sua vida. Agora, muitas vezes, o sujeito tem uma configuração mais fofinha, o sujeito tem uma configuração natural mais gordinha, por conta de inúmeros fatores hereditários, inúmero... isso não é, de maneira alguma, nocivo. Mas, o que acontece? Existe um padrão social de beleza e quando esse padrão fala mais alto, o sujeito começa a questionar a sua configuração corpórea para se adequar a este modelo. Aí já não tem a ver com vontade, aí tem a ver com desejo, aí tem a ver com o desejo de se adequar àquilo que é o desejo do outro. Então, eu preciso ser de uma forma ou de outra, para ser desejado pelo outro. Quando estou falando de uma adequação da saúde, nós estamos falando da vontade. E aí, você pode realmente adiar o emagrecimento, mas você não pode renunciar, porque senão você morre. Você vai engordando até morrer, até uma obesidade mórbida. Agora, quando você é fofinha, sempre foi desde menininha, a tua mãe é fofinha, todo mundo da tua família tem, mais ou menos esse estereótipo e você por algum motivo, por alguma experiência malsucedida, não conseguiu reconhecer a si mesmo e se contentar com o seu corpo e começa a estabelecer um ideal de corpo que a sociedade pregou, então, você está desejando ser de outra forma, então isso não é simplesmente adiar o emagrecimento, mas é renunciar a esse emagrecimento. Porque, por mais que você seja fofinha, você está saudável e muitas vezes, qualquer tipo de dieta, ou de exercício excessivo, vai fazer muito mais mal do que continuar sendo fofinha e linda como você é. Uma cilada! Porque, um sujeito que procura uma mulher com o corpo no padrão pré-estabelecido da sociedade, ele não está disposto a se aproximar de uma mulher para amá-la, mas ele quer um troféu para mostrar, para exibir a mulher. Quer se tornar bela para ser desejada pelo outro e o homem quer uma mulher bela para ser desejado pelo outro por ter essa mulher bela. Uma sociedade podre! Uma sociedade nociva, que só pega os desavisados, que só pega os estruturados, que só afeta o sujeito que não está sendo capaz de reconhecer a si mesmo, que não está de bem consigo mesmo.


TEORIA


Nós estamos aqui tentando refletir. Ninguém aqui está tentando colocar uma verdade acabada, ou saturada. Até porque, isso aqui é uma formulação nova, nós estamos formulando agora. Ah! Mas onde é que eu encontro isso, na literatura? Eu não sei! Sinto muito! Vou ficar devendo para vocês. Se não estiver fazendo sentido através da nossa reflexão, passa o vídeo, não precisa assistir. Não tem problema. Agora, se estiver fazendo o sentido, ótimo, vamos pensar juntos. É muito mais interessante que a gente possa, através das nossas experiências, refletir sobre o que a gente está chamando de instinto, sobre o que a gente tá chamando de pulsão, do que a gente tá chamando de desejo, ou de vontade, do que revisar literaturas. É muito importante que a gente possa reconhecer esse desencadeamento que vai do corpo até a alma. Não por uma especulação teórica, ou literária, mas por conta de algo que você reconhece no seu próprio funcionamento. Isso é muito mais importante do que qualquer leitura teórica, seja desde Kant, Schopenhauer, Platão, até Bion. ou qualquer outro contemporâneo.





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