quinta-feira, 29 de agosto de 2024

EXPECTATIVAS E TRANSFORMAÇÕES - Prof. Renato Dias Martino


REBAIXAR AS EXPECTATIVAS

É impossível não criar expectativas. Todo mundo vai criar expectativa. A questão é renunciar delas. A questão é rebaixá-las. Elas vêm. Elas vão vir. Não está dentro da perspectiva da escolha, criar ou não expectativa. Mas está dentro da capacidade do sujeito rebaixá-la. Ser capaz de renunciá-la, por conta de uma relação saudável. Uma relação saudável precisa rebaixar ao máximo o nível das expectativas.

EXPECTATIVAS

O que acontece numa relação baseada na expectativa? Não é que não vai criar expectativa. Vamos criar expectativa. Expectativas vão se criar naturalmente, mas uma relação baseada na expectativa, quando o sujeito não é capaz de renunciar as suas expectativas, o que acontece é que, ou o sujeito vive a relação iludido, ou o sujeito passa a exigir que o outro se torne aquilo que ele gostaria que ele fosse. E aí, eu começo a abusar do outro, eu começo a exigir do outro, eu começo a viver uma experiência onde o outro passa o tempo todo sendo oprimido.

RELAÇÃO VERDADEIRA 

Toda a relação começa assim. Ela inicia desta forma. Você se aproxima das coisas por algo que você imagina ser e nunca por algo que realmente está sendo. O Freud vai dizer, com muita clareza: “a primeira forma de se relacionar com pessoas e coisas é a relação por identificação”. Então, a gente se aproxima das pessoas e das coisas porque a gente se identifica com aquilo. Porque a gente vê naquilo, alguma coisa que já estava em nós. No entanto, esta relação para ser bem-sucedida, ela precisa evoluir para um outro modelo. Ela inicia através da perspectiva do futuro, mas eu preciso rebaixar, ou renunciar essa expectativa, para começar viver uma relação o mais próximo do real possível.

TRANSFORMAR 

A transformação, aquilo que faz com que o sujeito se torne alguma outra coisa, ou deixe de ser aquilo que ele estava sendo, nunca estará subordinada ao querer, ao desejar. Ninguém, se transforma porque quer. O outro não se transforma porque eu quero. Ninguém se transforma através do desejo. A gente se transforma através do fluxo do desenvolvimento da maturação emocional. Esta maturação emocional vai trazendo a possibilidade de desobstrução do caminho, desobstrução das ilusões que a gente vai criando e alimentando. E essa desobstrução vai propiciando a transformação. Eu não mudo porque eu quero, eu não mudo porque o outro quer que eu mude, mas eu mudo porque eu amadureci o suficiente para renunciar aos benefícios que estas ilusões me traziam e passo então a me transformar. 

AFASTAMENTO

O afastamento é sempre saudável, na medida em que está havendo um conflito emocional e afetivo. É importante que eu possa ter esse distanciamento. Não é o distanciamento físico, mas é o distanciamento emocional. Muitas vezes, as pessoas podem estar morando no mesmo lugar, podem estar pertinhos um do outro, mas tem a capacidade de se afastar afetivamente, emocionalmente. Para que esse afastamento? Para que o vínculo possa se readequar a um modelo possível. Continuar ligado da mesma forma, não vai permitir a transformação necessária. Ele vai precisar, impreterivelmente de um afastamento. E aí, a gente pode se lembrar lá do conto dos porcos espinhos do Schopenhauer, onde os porcos espinhos se afastavam porque um estava espetando o outro, mas voltava a se aproximar, porque o frio estava forte e um queria aquecer o outro e aos pouquinhos. nesse “afasta e aproxima”, eles foram encontrando um distanciamento adequado para que eles pudessem se aquecer, mas não se espetassem.



segunda-feira, 26 de agosto de 2024

SAÚDE NO VÍNCULO - Prof. Renato Dias Martino




DESEJO

Vamos pensar então, no desejo. O que eu estou chamando de desejo aqui? A expectativa. esperar que o paciente faça isso ou faça aquilo. Esperar que o horário acabe, desejar que alguma coisa aconteça. Quando você deseja que alguma coisa aconteça, você obstrui a coisa real de acontecer. Então, o paciente diz assim: “Olha, vou largar do meu marido. eu não aguento mais aquele cara. ele é um ‘mala’. Ele não tem me tratado mal. Isso aquilo, aquilo outro...” E aí, você registra na memória: “Ela vai se separar do marido”. E aí, na próxima sessão ela chega e fala: “Olha, nós reatamos, conseguimos entrar num acordo, vou dar mais uma chance para ele”. E aí, você falar: “Mas como isso! Eu estava aqui esperando que você iria largado do seu marido. Eu estava esperando aqui que você iria se separar. Você como é que você muda de ideia”. A minha expectativa não conta. É a vida dele. Ele precisa se capacitar para administrar a sua própria vida e o teu papel é de ajudá-lo nesta tarefa de capacitação de cuidar da própria vida.

SABER

E aí, a gente vai para o presente, ou para o saber. Rebaixar a ânsia de saber. Porque, quando a gente fala assim: rebaixe a ânsia de saber, renuncia ao conhecimento, na realidade, nós estamos falando assim ó: renuncia a tendência de tentar encaixar aquilo que está acontecendo naquilo que você supostamente já sabe. O saber é registrar o passado para tentar se prevenir para o futuro. Viver a experiência com o meu paciente sem tentar encaixá-lo naquilo que eu supostamente já sei, eu estou trazendo saúde pro vínculo.

CONCÓRDIA 

Toda a verdade só vai aparecer dentro do um ambiente de concórdia, de concordância. COM + CORDES COM é junto e CORDES é coração. Se não estivermos juntos de coração, não importa quem está com a razão. Vai haver sempre o embate. Agora, se você está junto de coração, importa menos ainda a razão, porque a razão é simplesmente um representante da materialidade das coisas, do saber, do conhecimento, daquilo que não passa de um olhar superficial da realidade. Para que possa emergir a verdade, nós precisamos cultivar um ambiente de concórdia, E aí, se a gente estiver falando então, do setting terapêutico, isso é fundamental. Se o sujeito não estiver em paz, se o sujeito não estiver tranquilo, ele não consegue, de maneira alguma, ser verdadeiro. Ele vai estar se defendendo o tempo todo. E aí, que psicanálise é essa? Psicanálise das defesas? Não! Ele precisa estar em paz, ele precisa estar bem, ele precisa estar seguro e se você estiver investigando o seu paciente, ele vai estar se defendendo das suas Investigações.

ACORDO COM A REALIDADE

O meu compromisso, em primeiro momento é com a realidade. O meu acordo é com a realidade. Antes do paciente me procurar, eu já havia travado um acordo com a realidade. Vou continuar tendo esse acordo com a realidade e cada interpretação, cada palavra, cada atitude que eu tiver, vai ser de acordo com a realidade. Eu vou ser um porta-voz da realidade. A realidade me mostra que o paciente tem o direito de se manter iludido. Ele tem o direito.

ATENÇÃO FLUTUANTE 

Nós temos inúmeras formas de aplicabilidade da psicanálise. Nós estamos falando aqui, de uma psicanálise que é uma extensão dos ensinamentos do Freud e o Freud foi claro quando ele disse assim: “Precisamos exercer a atenção livremente flutuante”. Se você está exercendo a atenção flutuante, você não pode, de maneira alguma estar preso em dados armazenados na memória. Agora, existem outras escolas lacanianas, sei lá o que “anas” aí, que usam das formulações que convém a eles usarem. Dentro daquilo que foi o ensinamento freudiano, resgatar a memória é extremamente nocivo para que você possa exercer aquilo que ele orientou enquanto atenção livremente flutuante.

RECORDAR

Quantas relações, quantos vínculos você tem na sua vida que você tem a chance de ser uma pessoa nova a cada encontro? Todo mundo já espera alguma coisa de você. Todo mundo já se lembra aquilo que você sem perceber prometeu que você vai ser. Todo mundo espera que você seja aquilo que eles lembram sobre você e isso obstrui a sua possibilidade de ser uma pessoa nova. O vínculo terapêutico precisa estar livre do resgate dos dados da memória. Eu estou falando de uma forma bem superficial, mas se a gente se aprofundar, a gente vai chegar ao ponto de que, aquilo que a gente se lembra não é verdade, não é realidade, é uma um registro extremamente limitado da realidade, um registro extremamente limitado daquilo que realmente aconteceu. Porque eu não dou conta de registrar de uma maneira abrangente, ou de maneira total. Eu estou subordinado ao estado de humor que eu esteja naquele momento. Esse registro vai estar contaminado com esse estado e depois, quando eu resgatar, eu já tenho outra contaminação, porque eu vou selecionar aquilo que me convém me lembrar. Então, a memória é extremamente nociva para um vínculo saudável. Diferente da recordação. RE-COR-DAR É Recordar! RE, que é de novo, COR, que é coração e DAR, doar novamente ao coração.

MEMÓRIA IRRIGADA DE AMOR

Não me lembrar das coisas que você me disse vai te dar a chance de você ser real. O meu amor por você não pode estar subordinado às coisas que eu me lembro de você. Talvez esteja subordinado às recordações. Mas existe uma diferença gritante entre memória e recordação. Para que a memória seja recordação, ela precisa estar sendo irrigada de amor. O amor faz com que essa memória ganhe vida e aí ela vai vir espontaneamente. Eu não vou buscá-la. O amor diz respeito à atenção, prestar atenção e quando eu presto atenção é porque eu estou exercendo a capacidade de amar. Quando eu digo: “eu já sei”, eu estou obstruindo a minha capacidade de amar.

SEM MEMÓRIA

Quando o paciente, por exemplo, vem e relata alguma coisa e diz assim: “Ah! Então, aconteceu aquela coisa que eu te falei. Você lembra?” Eu vou dizer: “me conta de novo” Quando ele me conta de novo, ele vai me contar de outra maneira, de outra forma, observando outras características daquilo que antes ele não tinha observado. Porque ele já não é mais o mesmo e hoje ele tem uma capacidade muito maior, uma maturidade muito maior para reconhecer aquilo que ele acreditava que era de uma forma. Se eu digo para ele assim: “sei sim, eu lembro muito bem o que você falou” Pronto! Limitei, obstruir a possibilidade de repensar aquilo e muitas vezes, é importante que eu até explique pro paciente de uma maneira muito clara. Olha: “eu não tenho memória” Eu brinco com meus pacientes assim: “eu tenho Alzheimer, eu esqueço de tudo que você me diz. Vou te dar a chance de me dizer tudo de novo.

MEMÓRIA, DESEJO E COMPREENSÃO

Porque isso coincide com uma orientação do Bion, que diz que um psicanalista precisa renunciar da memória dos dados armazenados na memória, logo estamos falando do passado. Dados armazenados na memória são nocivos na prática clínica. Por que são nocivos na prática clínica? Porque o paciente precisa ter a chance de ser uma pessoa nova a cada encontro e cada vez que o analista resgata dados da memória ele está reclamando que o paciente seja aquilo que ele foi. E nós estamos trabalhando não com aquilo que ele é ou aquilo que ele foi, mas nós estamos trabalhando com aquilo que ele está sendo. Nós estamos trabalhando com um movimento, com a transformação. Quando eu rebaixo o resgate dos dados armazenados na memória, eu estou trazendo saúde ao vínculo. Eu estou trazendo a chance de sermos novas pessoas. Não só o paciente, não só o analista, mas que o vínculo possa se renovar. O futuro diz respeito à expectativa, ao desejo. Quanto mais eu for capaz de rebaixar aquilo que eu espero em relação ao meu paciente, aquilo que eu espero em relação a mim mesmo e aquilo que eu espero em relação ao vínculo, tanto mais esse vínculo vai poder se manifestar de maneira verdadeira. Porque a expectativa daquilo que deveria ser, vai trazer a tendência a ser aquilo que não se está sendo. E o presente está acontecendo no aqui e agora, logo eu não posso saber sobre o presente. Eu só posso saber de alguma coisa que já passou. O conhecimento está subordinado ao registro da memória. Eu só sei de alguma coisa que já passou. Eu não sei aquilo que está acontecendo agora e nem aquilo que virá. Quando eu digo que eu conheço alguma coisa, eu digo que eu conheço baseado naquilo que eu registrei na minha memória, logo isso que eu estou dizendo denuncia a limitação do conhecimento. Porque o conhecimento diz respeito àquilo que já passou e se já passou é limitado, não é realidade.


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

O PRESENTE E A BUSCA - Prof. Renato Dias Martino



PRESENTE PELO PRESENTE

Quando eu sou capaz de realizar, o futuro será nutrido organicamente. Quando eu fico pensando no futuro, eu começo a estabelecer um “deveria ser” um “deveria fazer” e isso pode obstruir a realização. Quando eu faço no hoje, pelo hoje e para o hoje, eu consigo ter um fluxo mais saudável da minha vida. Vou te dar um exemplo muito claro disso. Esta aula que está acontecendo agora. Eu não estou pensando em nada sobre o futuro. Eu não tenho qualquer pretensão do que vai acontecer a partir dessa aula, amanhã ou daqui a pouco. Eu estou vivendo esse momento agora, tentando passar este conteúdo, tentando passar essa reflexão para vocês por conta da experiência do “aqui e agora”. Nada para o futuro. Não almejo qualquer resultado disso. Não almejo qualquer recompensa disso, mas estou fazendo porque isto compensa fazer. Quando eu cuido desta forma, a vida segue seu fluxo e eu prospero. Quando eu começo a pensar: “vou dar essa aula porque eu estou esperando que isso traga algum resultado”, eu começo a ficar nervoso, eu começo a criar um ideal, eu começo a criar um “deveria” e isso vai obstruir a experiência que está acontecendo aqui e agora, no seu fluxo natural. Quando, por exemplo, eu penso em fazer uma formação, uma faculdade, um curso, ou alguma coisa para obter um resultado disso, isso vai ser extremamente penoso. Quando eu inicio alguma experiência de conhecimento, ou de estudo porque aquilo me chama atenção e só aquilo, eu tenho um desempenho muito melhor. Eu não estou esperando no que vai dar aquilo, mas eu estou vivendo o que está sendo aquilo.

BUSCA

Eu tenho me utilizado cada vez menos da palavra busca, da palavra procura. Eu tenho acreditado a cada dia que aquilo que é saudável, aquilo que é real, que a própria verdade, se revelará, virá sem eu precisar buscar, se eu propiciar um ambiente saudável para isso. Cada vez mais fica claro que a verdade a gente não busca, a verdade vai se desvelar, vai vir até nós, na medida em que nos preparemos para isso. Ela virá no seu tempo. Ela virá naquele momento adequado que ela venha. Eu não tenho procurado mais nada. Eu não tenho buscado mais nada. Eu tenho me preparado. E aí, fica uma metáfora, do sujeito que fica caçando borboletas e o outro sujeito que faz um jardim belo e as borboletas vem até o seu jardim.



sexta-feira, 16 de agosto de 2024

AINDA SOBRE PUNIÇÕES E RECOMPENSAS - Prof. Renato Dias Martino



PRÊMIO E CASTIGO

Muitas vezes, os pais criam mecanismos de tentar facilitar um desenvolvimento que na realidade, tem seu tempo e muitas vezes, é moroso, muitas vezes, ele é lento e requer dedicação. Quando a gente fala por exemplo da punição ou da recompensa, essa é uma tentativa de abreviar este desenvolvimento. Quando eu ofereço uma recompensa por alguma coisa que na realidade seria da responsabilidade da criança fazer, eu passo a tentar abreviar um processo que seria de desenvolvimento da responsabilidade dela. A punição também está dentro dessa perspectiva. Ameaçar a criança de alguma coisa para que ela faça não se responsabilizando por aquilo, mas por medo da punição. E aí, a gente estrutura um modelo moral e não um modelo ético, onde a criança, onde a pessoa vai aprendendo aos pouquinhos e isso é sempre aos pouquinhos não é de uma hora para outra a se responsabilizar pelas suas realizações, pelos seus feitos, pelas suas tarefas e não fazer aquilo para ganhar alguma coisa ou fazer aquilo com medo de perder outra. Este é o atalho que é uma mentira, porque na realidade, isto que ele está tendo como recompensa, isso que ele está tendo como um ganho, ele pode conseguir de outra forma, em outro momento. E esta punição por exemplo, só vai acontecer se o outro descobrir que ela fez isso enquanto ela estiver secretamente fazendo isso, ela não vai ser punida e quando ela também perceber que ela não tem mais o risco de ser punida, ela automaticamente vai deixar de agir por conta do medo da punição.

RE-COMPENSA

Recompensa! Aquilo que eu faço, aquilo que eu realizo já compensa. Quando eu tenho um prêmio além disso, eu tenho uma re-compensa. Isso precisa me compensar novamente. Este é o grande problema do sujeito que não está sendo capaz de se responsabilizar. Ele não consegue reconhecer a sua realização como algo que compensa fazer. Então, não compensa fazer, só se eu tiver uma recompensa. E aí, a gente vai criando um paradigma social e isso se instala na criança a partir da criação dela em casa é mais fácil. Se eu oferecer uma recompensa, ele vai fazer isso, eu não vou precisar de ter o trabalhão que é mostrar para ele que ele precisa desenvolver a sua responsabilidade e fazer as coisas porque compensa fazer as coisas. É um atalho dos pais. Olha! Eu te dou uma recompensa. E aí, eu viro as costas e deixo ele sozinho fazendo. Agora, quando não tem recompensa, eu tenho que fazer junto com ele. Eu tenho que estar junto no processo de desenvolvimento, porque aí faz valer a pena aquilo que ele está fazendo. Porque aí, compensa fazer. Junto com o outro compensa. Sozinho eu preciso de uma recompensa.

DO CUIDADO

Quando a gente fala da ineficácia da punição ou da recompensa na transformação, na possibilidade do sujeito se tornar alguém melhor, uma pessoa melhor, a gente está falando essencialmente da criança. Do Cuidado com a criança. Quando isso chega à idade adulta, a possibilidade dessa transformação cai drasticamente. Desenvolvendo certos mecanismos de defesa que se instalam como um funcionamento tão enraizado na sua própria personalidade, que para ele abrir mão deste funcionamento é muito catastrófico no desenvolvimento dele e muitas vezes ele não dá conta de fazer isso, talvez na maioria das vezes. Esta ideia de punir ou recompensar na realidade é uma prática que acaba se instalando, porque não tem mais como fazer de outra forma. Então, ele é obrigado a ser punido porque, senão ele não faz aquilo ele é obrigado a ser retribuído para que ele possa fazer. Mas isso já está denunciando que houve uma falha na estruturação da personalidade desse sujeito, que seria bem-sucedida se ele tivesse sido cuidado adequadamente, se alguém tivesse responsabilizado por ele e que ele pudesse ter aprendido a se responsabilizar pelas coisas sem precisar ser punido e nem recompensa por fazer isso.

COMPORTAMENTO OU FUNCIONAMENTO

É importante que a gente possa diferenciar o funcionamento do comportamento. Algumas psicoterapias se propõem a mudar o comportamento. Isso não quer dizer que o sujeito se transformou no seu funcionamento. Quando o sujeito transforma a forma de funcionar ele passa a se comportar como uma extensão deste funcionamento. É diferente de propor tarefas para que ele deixe de se comportar dessa forma, porque este comportamento vai ser conveniente à situação. Um momento ele vai agir de uma forma e outro momento ele vai agir de outra dependendo das punições ou das recompensas.

O NOVO

O sujeito tem medo do novo. Mas ele tem medo do novo, sem ter consciência de que o real dano está no “de novo”. O novo liberta. aquilo que se repete de novo e de novo e de novo é o que traz a impossibilidade do crescimento da expansão


domingo, 11 de agosto de 2024

MODELOS EPISTEMOLÓGICOS - Prof. Renato Dias Martino



ABRANGÊNCIA SENSORIAL 

Só podemos ter um contato com a realidade dentro da perspectiva do estar sendo. O que a gente chama de conhecimento, na realidade, é uma aproximação. Aquilo que a gente pode constatar com os órgãos dos sentidos está num plano, mas e aquilo que a gente não pode, deixa de existir porque a gente não está enxergando? Deixa de existir porque a gente não consegue constatá-lo pelo aparato sensorial? Não! Não deixa de existir. Então a realidade vai para além da nossa capacidade da nossa abrangência sensorial.

RECONHECER A PRÓPRIA IGNORÂNCIA

Quanto maior a capacidade de tolerar o desconforto de reconhecer a nossa própria ignorância sobre o mundo, sobre tudo que a gente pode se dedicar a conhecer, tanto maior será a possibilidade de aprender com cada experiência. O que dificulta o sujeito de aprender com a experiência é justamente aquilo que ele acredita que já sabe. Se ele acredita que já sabe, então, ele encerra, ele satura a sua pesquisa quanto à realidade. Por mais que a gente tenha essa capacidade de registrar e armazenar na memória aquilo que a gente sabe, aquele saber adquirido, a nova experiência nunca vai ser igual a experiência anterior.

REALIDADE E PRESENTE 

Reconhecimento da realidade. Esta palavra se adequa muito mais do que o conhecimento. Eu só conheço alguma coisa que já passou. O conhecimento está subordinado ao registro na memória. Acontece alguma coisa, eu tenho conhecimento daquilo e registro na memória, agora eu sei sobre isso e a realidade se configura no tempo presente. O fluxo da realidade está no tempo presente, nunca no passado. Aquilo que está no passado não é realidade. Então, não dá para conhecer a realidade, dá para reconhecer a realidade, dá para admitir que a realidade existe, mas não dá para conhecê-la.

A QUESTÃO DA MEMÓRIA 

A capacidade de registrar alguma coisa, ela já é deficitária, porque você não tem um aparato que abrange tudo que está acontecendo naquele momento. Você registra aquilo parcialmente. Se a capacidade de registrar já é limitada, já é deficitária por si só, quando você vai resgatar, isso que você registrou sofre uma seleção e essa seleção está subordinada à sua condição emocional daquele momento. O seu humor daquele momento. O resgate também vai sofrer este impacto. Quando o sujeito está registrando a memória, ele está, de alguma forma, influenciado não só por emoções, mas também por sensações e tanto as emoções quanto as sensações interferem no processo de registro deste fato que está acontecendo. Então, ele está registrando sob a influência de uma emoção, de uma sensação, de sentimentos. Então, isso tudo vai influenciar o que especificamente ele vai registrar. Não vai conseguir registrar o todo da experiência, ele vai registrar só aquilo que o tiver sensibilizado naquele momento. E até afetos muitas vezes ele é afetado por alguma coisa e este afeto faz com que ele registre isso não como o que está acontecendo, mas como ele imagina que esteja acontecendo. Quando ele vai resgatar esses dados que ele registrou, este resgate vai sofrer mais uma vez a influência de emoções, sentimentos, sensações e afetos. Dependendo da forma como ele está naquele momento que ele está resgatando ele vai selecionar aquilo que ele julga ser importante se lembrar. E mais ainda, quando ele for comunicar isso que ele se lembrou ao outro, ele seleciona mais uma vez e aí, ele vai comunicar não só com todas essas interferências que aconteceram anteriormente, mas ainda com a interferência da intenção que ele tem em comunicar isso para o outro. Isso tudo fica tão nebuloso, tão poluído que eu não posso chamar isso de realidade. A realidade só pode se manifestar no tempo presente, naquilo que a gente está sendo. Assim que aquilo passar, eu já não posso mais chamar isso de realidade.

CONSCIÊNCIA E SENSO COMUM 

O Bion vai usar ali, o senso comum, “common sense”, como um código. A possibilidade de a gente criar um meio de comunicação disso que a gente supostamente sabe. Na verdade, o Bion resgata isso aí do filósofo John Locke, que ele já propôs isso anteriormente e o Bion resgata essa ideia para trazer essa possibilidade de comunicação do que a gente tem como verdade a partir de um senso comum. Que também a gente pode chamar de consciência, a ciência compartilhada. Com + ciência Cria códigos para gente comungar daquilo que supostamente a gente sabe.

PULSÃO EPISTEMOFÍLICA

Lá em 1905, Freud nos TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE, vai levantar a ideia da pulsão epistemofílica. O sujeito tem essa ânsia de saber de maneira instintual. La do grego EPISTEME, “conhecimento” e PHILOS, que é “apreço” ou “atração”. Então, o sujeito tem atração pelo conhecimento, pela exploração. Ele procura. Então, ele nasce com isso. Ele vai dizer que essa tendência de investigação natural do ser humano, ela está ligada... Claro, se a gente está falando em Freud, ele vai dizer que isso está ligada à sexualidade. Ele não busca essa teorização da coisa, mas ele busca esta exploração prática e vivida. Dentro da perspectiva da insegurança. O sujeito vai aguçar o seu instinto epistemofílico a partir da sensação de insegurança. O Freud vai chamar atenção para o momento onde nasce um novo irmãozinho e o sujeito se sente inseguro, imaginando que ele vai deixar de ser amado. Esta experiência aguça a ânsia de saber dele, de conhecer e aí ele começa a explorar cada vez mais as coisas, a partir de experiências de se sentir inseguro. E esse é um problema muito complicado, porque muitas vezes, o sujeito desenvolve uma capacidade grande intelectual, uma capacidade de conhecimento muito grande, através da experiência de não ter se sentido amado, acolhido, ou que não tenha tido atenção dos seus pais. Por conta disso, ele começa a querer saber porque. Por que eu não sou amado? Por que eu não tenho atenção?

O ESTRANHO 

A Melanie Klein vai trazer a ideia da exploração do corpo da mãe. Esse instinto epistemofílico, na realidade, para Melanie Klein, é uma busca por conhecer da onde eu vim, do interior da mãe, da minha origem. A Melanie Klein observou que o bebê tem esse impulso epistemofílico. primeiro a partir dessa coisa de ver, de tocar, de pesquisar o corpo materno e é muito importante que ela possa ter acesso ao corpo materno, para que ela possa desenvolver isso. Porque muitas vezes, ela não tem. E aí, é muito triste. E na realidade, tudo que é estranho gera insegurança. Tudo que a gente percebe como algo que não é comum, gera uma insegurança e a tentativa de conhecer é justamente uma suposta tentativa de controlar isso. Então, quando a gente conhece alguma coisa, a gente está tentando controlar, está tentando dominar isso, porque isso nos gerou insegurança. O instinto epistemofílico vem justamente para aplacar a insegurança frente aquilo que é estranho. Quando o bebê começa a perceber que ele está separado da mãe, que ele não é parte da mãe, ele começa a tentar conhecer isto que é algo separado dele.

PESQUISAR PARA NÃO ATUAR

E se existe alguma função saudável nesta experiência de conhecer, de explorar, de investigar, das crianças, do bebê, isso precisa se desdobrar no adiamento da ação. Ele busca conhecer para que ele seja capaz de adiar a ação motora. Então, através do conhecimento ele cria um arcabouço de dados que vai trazer para ele a possibilidade de não agir sem pensar. Ele vai registrando dados que vão trazer para ele a possibilidade de não atuar.

VÍNCULO K

Lá em 1962, o Bion publica APRENDER COM A EXPERIÊNCIA e ali ele propõe três formas de vínculo. Ele vai propor o “L”, o “H” e o “K”. O “L” é amor, o “H”, ódio e o “K” é o conhecimento. Love, Hate e knowledge. Tem os seus referentes negativos. Menos L, menos H e menos K. O K é justamente oriundo da pulsão epistemofílico. A pulsão de conhecer vai gerar o vínculo K. Eu vou me relacionar, vou me vincular a alguma coisa porque conheci esta coisa.

NÃO SEIO, LOGO PENSO

O Bion traz a ideia de que esse pensamento epistemofílico é anterior ao pensador. Como é que ele justifica isso? Ele vai propor que o bebê tem uma expectativa inata de seio e esta expectativa inata de seio vai gerar uma preconcepção de seio, que vai levá-lo a explorar, a buscar, a querer conhecer isso que ele tem uma expectativa inata. E isso vai gerar o vínculo “K”. Quando manifesta a expectativa inata de seio, gera-se uma preconcepção de seio e ele procura o seio e acha, ele tem uma concepção do seio. E quando essa mesma experiência acontece, manifesta-se a expectativa de seio, ele cria preconcepção do seio e o seio não está, ele desenvolve o pensamento, ele pensa sobre o seio. Não seio, logo penso. Para que eu possa pensar, eu preciso ter uma experiência do “não seio”. A ausência de seio me faz desenvolver o pensar. Para que eu possa aprender a pensar, eu preciso tolerar a ausência do objeto. Para que o bebê seja capaz de pensar a mãe, a mãe precisa estar ausente. Expectativa de seio, que é inata, pré-concepção de seio, encontrou com o seio, concepção do seio. A partir dessa concepção do seio, eu vou experimentar agora a ausência do seio. Expectativa de seio inata, pré-concepção do seio e ausência do seio, pensar. E aí, vou ter a chance de conceitualizar, vou ter um preconceito e a partir dessa experiência renovada, eu vou criar um conceito. O que é o conceito? Saber sobre o seio.

EVOLUÇÃO DOS VÉRTICES

Nós vamos falar de três vértices epistemológicos. Nós vamos falar da ciência e da filosofia, no primeiro vértice, científico-filosófico, nós vamos passar pelo estético-artístico e vamos expandir para o âmbito místico-religioso. Então, são três vértices que, na realidade, não é uma proposta bioniana, na realidade, o Bion resgata isso de outros pensadores, por exemplo de Platão, por exemplo da própria Bíblia que vai trazer e elementos muito próximos disso. E aí, a gente pode ter três configurações aí, de evolução desses três vértices. Então, a gente pode ter em primeiro momento, uma sucessão que vai desde o do mais saturado, que é o científico-filosófico, naquela linguagem unívoca. A ciência precisa ter uma linguagem unívoca que pode ser entendida por todos, por isso é ciência e para isso ela precisa saturar, ela precisa acabar aquele pensamento em si mesmo. Passando pelo estético-artístico, onde a possibilidade se expande na criatividade e na contemplação da beleza e chegando até o místico-religioso, que está no não-sensorial que vai para além do estético-artístico. Então, a gente pode ter este gradiente de evolução, mas a gente também pode começar do estético-artístico, por exemplo. O estético-artístico é aquilo que diz respeito à criação. Talvez o estético-artístico seja o mais primitivo dos vértices epistemológicos, que depois vai passar pelo científico-filosófico, que vai ser a nomeação desta criação e depois vai para o místico-religioso, onde tudo isso é destruído para ir para um mistério, para aquilo que vai para além do conhecimento. Porque que eu falo que o estético artístico talvez seja o mais primitivo? Por que a criação artística parece ser a mais primitiva das linguagens epistemológicas. Porque, por exemplo, uma criança, antes dela falar, ela canta, antes dela ser capaz de verbalizar um discurso, ela é capaz de cantarolar, antes dela aprender a andar, ela dança. Então, parece que o estético-artístico vem antes de qualquer outra coisa. E aí, depois a gente vai falar da nomeação disso, científico-filosófico e depois esse nome vai ser destruído em nome da expansão do mistério da fé, no místico-religioso. Mas a gente pode fazer o inverso também. A gente pode partir da experiência mística, que é algo que é muito mais expansivo, que vem até, antes do próprio ser humano, transformando essa experiência mística em criatividade, em arte, no estético e depois tentando nomear essa experiência artística dentro do âmbito científico-filosófico. Então, nós temos três possibilidades de configuração da evolução dos vértices.

ACORDO COM A REALIDADE

A gente fala de modelo científico-filosófico, estético-artístico e místico-religioso. Qualquer ciência? Qualquer filosofia? Qualquer arte? Qualquer padrão de beleza? Qualquer religião? Não! Não é qualquer! Precisa haver um acordo com a realidade. Precisa haver uma interação com a realidade. Porque, muitas vezes, você tem uma ciência que está intoxicada, comprometida com ilusões com alucinações, com obstruções, menos do que a possibilidade do reconhecimento da realidade. Nós temos inúmeros exemplos aí, de ciências que se dizem ciências, que estão dentro da academia, mas que, na realidade, praticam um desserviço no reconhecimento da realidade. A filosofia, da mesma forma. Pode ser uma filosofia, mas que esteja extremamente contaminada com obstruções do reconhecimento da realidade. A arte, da mesma forma. Você pode pegar, por exemplo, uma música que fala absurdos, que tem uma letra dizendo absurdos. A religião também, está dentro dessa perspectiva. O místico também está dentro dessa perspectiva. O que é o místico? A palavra místico vem de mistério. Isso quer dizer que é necessário o ato de fé. Se você precisa de evidências você já perdeu o místico. O místico é tolerar o mistério sem precisar de buscar evidências. Então, a gente tem aí, teólogos, por exemplo, querendo provar a existência de Krishna no mundo material, provar a existência de Cristo no mundo material. Não é função da religião essa. Não é função do místico isso. O místico é fé. Porque, se você tiver prova material, você não precisa ter fé e aí caiu por água o modelo místico-religioso. Esta religião, esta pseudoteologia não nos interessa.

O BOM, O BELO E O VERDADEIRO

Enquanto psicanalistas aqui, a gente tem esses três modelos, a partir da ideia proposta pelo Bion. Na obra do Bion a gente pode reconhecer pode perceber esses três modelos, de maneira muito clara, mas isso está sendo cogitado na humanidade há muito tempo. Talvez, desde o Mahabarata, desde o Bhagavad Gita, das escrituras védicas, passando pelas escrituras sagradas da Bíblia, outros registros, a gente encontra o Bom, o Belo e o Verdadeiro. Poderíamos chamar de bom aquilo que é filosófico, científico, podemos chamar de Belo aquilo que é estético, artístico e verdadeiro aquilo que está dentro do místico, religioso.

CIENTÍFICO-FILOSÓFICO 

O modelo científico-filosófico. O que a gente está chamando de modelo científico-filosófico? Dentro do modelo científico-filosófico, nós temos uma característica de certa exatidão das palavras. Um cientista tem que tratar das coisas de maneira unívoca, admitindo apenas uma interpretação, um significado, sem muita ambiguidade, sem muita abertura. Porque? Ele precisa que isso seja comunicável a todos. Esta é a vantagem desse modelo, quando você fala de um conceito científico, ou de um conceito filosófico, você trata de alguma coisa que pode ser entendida por todos de maneira unívoca. Este é o benefício, mas tem um grande prejuízo. Qual é o prejuízo? A limitação, a saturação, não permitir grandes expansões.

CIÊNCIA QUÂNTICA

Ainda assim, nós temos a ciência quântica, nós temos a física quântica que se iniciou lá, muito provavelmente pelo Max Planck e dentro da física quântica a gente começa a quebrar este paradigma da saturação. A partir da física quântica a gente começa a perceber que apesar de estarmos tratando de ciência, existe ali, o que o Heisenberg vai chamar de princípio da incerteza. Então, ele vai dizer assim: quando a gente analisa, quando a gente estuda uma partícula, eu não posso ter uma exatidão, porque quando eu vou observar essa partícula, eu preciso jogar uma luz sobre ela, eu preciso jogar uma iluminação. Não dá para examinar essa partícula sem iluminação e quando eu jogo a iluminação nesta partícula, eu comprometo o comportamento dessa partícula, porque a luz trabalha a partir de partículas de fótons e os fótons, ao bater nessa partícula, comprometem a configuração dessa partícula. A partir ali, do estudo do Heisenberg, a gente começa a ter um precedente dentro da ciência, de incertezas. Trouxe até uma frase aqui do Heisenberg, lá no SOBRE O CONTEÚDO INTUITIVO DA CINEMÁTICA QUÂNTICA E MECÂNICA, “É um importante enunciado da mecânica quântica, que revela o fato de que não podemos determinar com precisão e simultaneamente a posição e o momento de uma partícula.”  Então, quando a gente tem um olhar aí, um pouco mais macro a gente pode até assegurar certa precisão, mas quando a gente observa dentro de uma perspectiva micro, isso passa a ser inviável e o próprio Heisenberg vai dizer ali, assim, uma ciência boa precisa estar sendo guiada por uma filosofia boa. “Uma boa física é inadvertidamente prejudicada por uma filosofia ruim”. Então, você pode até ter uma boa ciência, mas se essa ciência estiver sendo guiada por uma filosofia pervertida, será uma ciência pervertida. Então, a qualidade do estudo científico depende da qualidade da filosofia que esteja orientando este estudo.

FUNÇÃO FILOSÓFICA 

A gente pode resgatar o Shopenhauer, dentro da filosofia. Schopenhauer chamou atenção sobre a vontade. Para que eu possa ter um bom reconhecimento da realidade, para que eu possa estabelecer um acordo com a realidade é importante que eu seja capaz de adiar a minha vontade, de rebaixar a minha vontade e aí incluo o desejo também, ser capaz de renunciar ao meu desejo, para que eu possa reconhecer a realidade. Porque a minha vontade, assim como o meu desejo, pode turvar o meu reconhecimento da realidade que existe independente da minha vontade ou do meu desejo. Quando o meu desejo é muito exacerbado, quando a minha vontade está muito grande, eu vou reconhecer essa realidade não como ela está sendo, mas como eu gostaria que ela fosse. a vontade, ou ainda o desejo, contamina o possível reconhecimento da realidade, contaminam o reconhecimento da realidade, ou possível reconhecimento da realidade.

NA PRÁTICA

Vamos então usar o modelo científico-filosófico dentro da configuração da prática clínica. Vamos supor aqui que a gente tem um caso em que a interpretação psicanalítica seria assim: a tolerância quando ausente do reconhecimento do limite converte-se em permissividade. A tolerância é importante, mas ela precisa do limite, porque se o sujeito não reconhece o limite, ela não é simplesmente tolerância, mas ela é um representante da permissividade. Nós podemos transformar essa formulação em matemática. Como? Tolerância menos limite, igual permissividade. Transformamos então esta formulação do âmbito emocional-afetivo nas formulações matemáticas. Um outro exemplo disso? Verdade menos amor, igual crueldade. Outra formulação. O contrário também é verdade. Amor menos verdade, igual paixão. São formulações unívocas. Isso é isso em qualquer lugar. Esta formulação é verdade onde tiver seres humanos. Onde tiver seres humanos se relacionando, isso vai ser verdade. Então, o modelo científico-filosófico cabe muito bem aí. Esse modelo busca certa linguagem unívoca, mas não resolve. O Bion vai colocar lá no ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO: “As matemáticas disponíveis não fornecem formulações adequadas ao analista.”  É um modelo ele vai até certo ponto.

INSTINTO DE AUTOPRESERVAÇÃO 

Expandindo mais a matemática, nós temos aí, nesta formulação nesta função, nós temos o fator de instinto de autopreservação. Quando eu incluo o instinto de autopreservação, eu vou percebendo o limite e a permissividade vai diminuindo. A diminuição da permissividade está subordinada ao acordo com um instinto de autopreservação. Um sujeito que não respeita o seu instinto de autopreservação, muito provavelmente vai passar dos limites. Ou vai permitir que o outro abuse dele, ou vai passar do limite, abusando do outro. Neste âmbito, a regra social, ou aquilo que o Kant chamou de Imperativo Categórico, não resolve a questão, ou aquilo que a gente vai chamar em psicanálise de superego, de ideal de eu, não resolve a questão. Eu preciso acessar, eu preciso estar de acordo com alguma coisa muito mais primitiva, que está na ordem dos instintos. Só isso vai poder resolver o respeito, o reconhecimento do limite, que vai permitir que eu possa perceber o momento que passa, o abuso tanto comigo quanto com o outro.

ESTÉTICO-ARTÍSTICO

Vamos pensar o modelo estético artístico, na linguagem poética, imagética, na abertura polissêmica, nas metáforas. Mas isso tudo é muito perigoso, porque muitas vezes, eu posso tomar como verdade uma poesia alucinada, uma alucinação do sujeito. A utilização do vértice estético-artístico carece muito mais do contexto, do que do texto. Se você estiver analisando o texto de maneira muito precisa, você não consegue se utilizar deste modelo. Precisa inserir este modelo no contexto. O psicanalista precisa ter uma cota artística muito manifesta para que ele possa exercer a sua função de maneira bem-sucedida. Expressão estético-artística parece ser a manifestação mais primitiva das três e aí a gente já falou sobre isso. Uma criança, antes de falar ela canta, antes dela andar ela dança, antes de escrever ela desenha.

MÍSTICO-RELIGIOSO

Você precisa rebaixar os cinco sentidos para que você possa acessar o âmbito místico-religioso. Enquanto você estiver apegado aos seus cinco sentidos, você não consegue se utilizar do modelo místico-religioso. Isso faz com que esse modelo seja o mais difícil. Esse modelo é, sem dúvida o modelo que as pessoas têm maior dificuldade, porque precisa do ato de fé e se o sujeito não tiver o ato de fé, ele não vai conseguir acessar este modelo. O próprio Freud teve grande dificuldade com isso, porque ele não conseguia encontrar nele aquilo que o Rolland, o amigo dele propôs enquanto Sentimento Oceânico. E ele foi humilde o suficiente para dizer: “eu não sinto em mim. Então, não posso falar sobre isso”. Ou seja, Freud pôde ir até certo ponto. Depois do Freud vieram outros que puderam expandir para além daquilo, sem deixar de ser psicanálise. Você precisa ter vivido, você precisa ter experimentado. Requer uma tolerância muito grande. O sujeito, ele pode, na melhor das hipóteses, a partir de um estudo sobre isso, nomear experiências que ele já tenha vivido. Mas qual é esta religiosidade? Qual é esse misticismo? É aquele em que o sujeito fica pedindo as coisas para Deus? É aquele em que o sujeito se utiliza da Bíblia como um catálogo da Natura que ele só abre para fazer pedido? Não! Não é esse. É aquele em que o sujeito se coloca à disposição para que ele possa ser um instrumento de Deus, um instrumento de algo maior, um instrumento da realidade. Então, nós precisamos ser os instrumentos da realidade, aquele que é o porta-voz da realidade, ou representante da realidade. Então, nós estamos aqui para representar a realidade através de um acordo que nós fizemos com ela. A fé pressupõe o rebaixamento da minha vontade. É “seja feita a vossa vontade”, não a minha. E quando rebaixo a minha vontade, eu tenho maior acesso à realidade, eu tenho maior acesso ao reconhecimento da realidade. Por quê? Porque a luz é da realidade, não minha. Então, eu não posso conhecer a realidade. Para que eu conheça a realidade, eu preciso jogar luz na realidade, assim como na física quântica, mas para reconhecer a realidade eu não preciso jogar luz, eu preciso na realidade, rebaixar a minha luz, para que a realidade possa manifestar a sua própria luz. Na clínica isso fica muito evidente, eu não vou iluminar o paciente. Quando eu rebaixo a minha vontade, o meu desejo, aquilo que eu supostamente sei, ou aquilo que eu tenho como dados armazenados na memória, eu rebaixo a minha luz e passo a reconhecer a luz que vem do paciente.

REBAIXAMENTO DA VONTADE E RENÚNCIA DO DESEJO

a proposta da filosofia do Schopenhauer é de rebaixar a vontade e o Bion, depois vai falar: “sem desejo”. Esta proposta está presente muito antes de qualquer colocação filosófica ou psicanalítica, o próprio cristianismo tem dentro dessa perspectiva o Pai Nosso, “seja feito à vossa vontade”. No budismo não é diferente, nas escrituras védicas também não é diferente. O estudo da mecânica quântica, hoje também traz essa ideia do Princípio da Incerteza. Então, a verdade não pode estar subordinada àquilo que eu gostaria que fosse, mas aquilo que ela realmente está sendo.

CONCÓRDIA 

Nós precisamos da concordância dos três vértices. Um vértice não pode disputar com o outro, precisa haver um senso, uma concórdia entre os três vértices. esta concórdia vai fazer com que eu possa reconhecer a realidade de maneira polêmica.



quinta-feira, 8 de agosto de 2024

INVESTIGAR O PASSADO OU PERMITIR O NOVO - Prof. Renato Dias Martino



INVESTIGAR

Apesar desta palavra investigação estar amiúde, nas literaturas psicanalíticas de pensadores consagrados como Freud, Melaine Klein e outros usarem a palavra investigação, não é função de um psicanalista real investigar. Nós precisamos estar abertos para acolher aquilo que o paciente trouxer. A investigação precisa ficar para os investigadores, para a polícia, para qualquer outro profissional, mas o psicanalista não pode se prestar a investigar a vida do paciente. Ele precisa estar aberto para refletir sobre os conteúdos que o paciente trouxer. A investigação abre um campo persecutório, abre um campo onde a perseguição se instala.

O NOVO

Qual é a origem da repetição de padrões na vida do sujeito? Por que que o sujeito remonta o passado constantemente, seja pela lembrança ou seja pelas ações? Porque ele não conseguiu ainda, viver experiências novas que pudessem trazer para ele reparações para que ele pudesse desobstruir o caminho e seguir o fluxo da vida. Na medida em que ele vive experiências saudáveis, isso vai propiciando para ele possibilidades de reparações nesse funcionamento para desobstruir e ele possa continuar a sua vida com experiências novas. A questão não é investigar a vida do paciente para ver por que aquilo está se repetindo, mas é propiciar experiências novas. Essas experiências que vão trazer para ele a possibilidade de se ocupar com o presente, trazer para ele a possibilidade de deixar de se preocupar com o futuro e de remontar o passado através de lembranças dolorosas.

O LUTO E O NOVO

O luto é justamente isso: ser capaz de deixar passar. Ser capaz de permitir que a coisa passe. É passar pela coisa para que a coisa passe. Isso é elaborar o processo do luto. Isso é sofrer o processo do luto. Quando eu tento investigar a vida do sujeito, eu não estou permitindo que o fluxo aconteça e eu acabo não conseguindo aprender com a experiência, porque eu fico preso no passado. Ancorado naquilo que passou.